Título: Uma aventura de 10 mil km pela América do Sul
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2006, Nacional, p. A13

O plano era perfeito. Tinha sido estudado em todos os detalhes pelo organizador da viagem, o estudante de filosofia Werley Torres, de 33 anos. Ele chegara até a ligar para embaixadas brasileiras e centros de informações dos países vizinhos para confirmar o que vira na internet sobre as distâncias a serem percorridas e as condições das estradas. Na quinta-feira, dia 17, quando ele, a namorada e outras 40 pessoas embarcaram em São Paulo, num ônibus fretado, estavam convencidos de que chegariam a Caracas, na Venezuela, na terça-feira, 24. Iriam diretamente para a festa de abertura do Fórum Social Mundial.

Pelas contas do navegador Werley, era possível atravessar Mato Grosso, cruzar a Bolívia, o Peru, o Equador e a Colômbia e percorrer parte do território venezuelano, num total de 6 mil quilômetros, em 5 dias. Com tranqüilidade e na média, modestíssima, de 60 km por hora. Deu tudo errado. Eles só chegaram a Caracas ontem, dia da festa de encerramento do fórum. Passaram dez dias na estrada, com três motoristas revezando-se ao volante.

Percorreram 10 mil quilômetros em vez de 6 mil, sofreram com o frio dos Andes, pisaram no barro, enfrentaram infecções intestinais e tiveram muito medo - ora das condições precárias das estradas na Bolívia, ora dos precipícios nas encostas do Pacífico, do estado de guerra na Colômbia.

Mas também tiveram bons momentos, como a visão de golfinhos nadando no Pacífico. Ao parar para descansar num bar em La Paz, descobriram que era ao lado do palácio onde Evo Morales estava tomando posse. Chegaram até a acenar para o presidente Lula, quando ele apareceu na sacada do palácio. Não sabe se foram vistos.

Na Colômbia, por causa do estado de guerra que o país vive, só puderam viajar durante o dia. Com medo de serem parados por algum grupo de extrema direita, também jogaram fora as bandeiras do PT e todo material que pudesse lembrar grupos esquerdistas. "A recomendação que recebemos das autoridades brasileiras foi para falar só de futebol."

ACIDENTE

Ontem, Werley admitiu que errou no cálculo da distância. Os números que usou se referiam a percursos em linha reta - a coisa menos provável no trajeto que escolheram. "Nunca vi tanta curva", disse. "Na Panamericana, nos Andes, foi de matar de medo. Além das curvas, passávamos por penhascos altíssimos, sem proteção nenhuma, com o mar lá embaixo."

Não foram só as curvas que atrasaram a viagem. Na Bolívia, onde amargaram 450 quilômetros de estrada de terra, tiveram que descer e aplainar um trecho coberto de barro, abrindo caminho para o ônibus, em plena madrugada. No Peru, enfrentaram estradas cobertas por uma fina camada de gelo. Um dos piores trechos foi o da região de Arequipa. O mesmo onde ocorreu o desastre com o ônibus do Diretório Central da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual morreram quatro estudantes.

A distância entre o ônibus onde Werley viajava ao lado do piloto e o da UFMG era de 12 horas de estrada. Eles tinham combinado de se encontrar em Cáceres, na fronteira com a Bolívia. Mas os mineiros se atrasaram e ficaram para trás.

Os viajantes receberam a notícia das mortes num posto policial no Peru. Pararam imediatamente para se comunicar com a família no Brasil e dizer que estavam bem. "Muitos parentes já estavam chorando."

Um dos passageiros foi vítima de uma infecção em Quito, no Equador. Duas religiosas dominicanas que estavam no ônibus levaram-no a um convento, de onde o encaminharam para um hospital."Ficamos parados 5 horas até melhorar."

Os estudantes não querem voltar pelo mesmo trajeto. O problema dessa opção é que a viagem ficaria mais cara e o dinheiro acabou. Mas Werley está otimista como sempre.

No meio da entrevista, fez um apelo às organizações não-governamentais do fórum para que ajudem o grupo a retornar. Também disse que deseja menos discussão na viagem de volta: "Como tínhamos muitos sindicalistas e militantes do movimento estudantil, qualquer dúvida que surgia já queriam transformar numa assembléia, o que só atrasava a viagem. Assim não dá."