Título: Vitória democrática - e preocupante
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/2006, Internacional, p. A16

O Ocidente tem dois olhos, um para rir, outro para chorar.

O olho que ri é o dos democratas, de todos os que juraram introduzir a democracia nos países orientais. A eleição palestina é, de fato, uma vitória da democracia: liberdade absoluta, e nenhum incidente.

O olho que chora é o que constata que essa vitória da democracia se traduziu em resultados consternadores. O partido da velha e desdentada Fatah, que bem ou mal pilotava os palestinos havia 50 anos, recebeu uma bofetada. E o partido vencedor foi o Hamas, de inspiração islâmica radical.

Portanto, de um lado os democratas deveriam se pavonear e Bush se felicitar por ver sua doutrina enfim introduzida no Oriente Médio. De outro, os mesmos democratas se lamentam porque o vencedor das eleições, o Hamas, tem uma cabeça perigosa. Ele não é flor que se cheire.

Criado em 1987 pela Irmandade Muçulmana (que foi a incubadora de toda sorte de movimentos islâmicos radicais), o Hamas é terrorista. Esteve por trás das maiores carnificinas em Israel. Não espanta, portanto, que havia algumas semanas as potências ocidentais viessem malhando o Hamas. Tanto a União Européia como os Estados Unidos puseram em dúvida a legitimidade da presença do Hamas no próximo governo palestino. Ainda na terça-feira, quando o crescimento do Hamas já se desenhava, George Bush explicava ao Wall Street Journal que não podia haver diálogo com terroristas. E o primeiro-ministro interino israelense, Ehud Olmert, dizia: "O Hamas é uma organização terrorista que deve ser desarmada. Não manterei diálogo com ela." Os recados tonitruantes da União Européia, de Bush e de Olmert se justificam. O Hamas, em sua carta de 1988, previa a eliminação de Israel, a libertação de toda a Palestina e o combate armado para conseguir sua meta obsessiva: a criação de um Estado islâmico do Mediterrâneo à Jordânia.

Mas hoje as fanfarronadas do Ocidente são inúteis e têm duas falhas. A primeira é que reforçaram o campo do Hamas nas eleições palestinas e provocaram o inverso no campo da Fatah. A segunda, que o Hamas ganhou e está, portanto, qualificado a pesar na Autoridade Palestina, seja pela via parlamentar, seja pela participação no poder.

O que podem fazer então os interlocutores da Palestina (Israel, Estados Unidos, Europa)? Pôr no ostracismo os futuros responsáveis pela Palestina? Relegar o Hamas às trevas exteriores? É uma atitude perigosa. Primeiro porque isto desprestigiaria a via democrática no exato momento em que ela conhece um raro sucesso no Oriente Médio. Até mesmo o porta-voz do Departamento de Estado americano, Sean McCormack, reconheceu que Washington, que tomou a frente da "cruzada democrática", não poderia absolutamente recusar o resultado das eleições democráticas na Palestina.

Em segundo, quer se deplore ou não, o fato é o seguinte: daqui em diante, o interlocutor do Ocidente e de Israel não será somente a velha e corrupta Fatah. Serão os incorruptíveis, austeros e terríveis chefes do Hamas. É com essa gente que será preciso conversar. A menos que se escolha outra opção: congelar o diálogo. Deixar a Palestina correr para o abismo, hipótese ainda mais angustiante do que o Hamas, ligado aos furiosos do Irã, ocupar uma posição importante no Oriente Médio.

A interrogação agora se desloca para o Hamas. Antes da eleição, o Hamas se apresentou como uma ovelha. Dá para acreditar nisso? É fato que o Hamas é formado por várias correntes, uma das quais se diz pragmática e defensora da paz. Mas não devemos ter muitas ilusões.

Mesmo os pragmáticos do Hamas continuam sendo islâmicos radicais, ideólogos, religiosos. Embora aceitem abrandar seus métodos, o objetivo permanece inalterado: o fim de Israel e o estabelecimento nas margens do Mediterrâneo de um Estado islâmico. Raramente a comunidade internacional e o governo pós-Sharon de Olmert terão se deparado com um dilema tão cruel.