Título: Que pensar da China?
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Ao mesmo tempo que jornais se povoam de notícias sobre avanços econômicos da China, intensificam-se os sinais de preocupação com os chamados custos ambientais do modelo de crescimento naquele país. E com as conseqüências planetárias que poderá ter o que está acontecendo ali e na Índia, em termos de depleção de recursos e serviços naturais, bem como de emissões de gases que intensificam o efeito estufa, já que as duas nações, juntas, têm 2,4 bilhões de habitantes, quase 40% da população do mundo.

De fato, o produto interno bruto (PIB) chinês, há pouco revisto, já está em mais de US$ 2 trilhões, talvez à frente da França e da Grã-Bretanha, superado apenas por Estados Unidos, Japão e Alemanha. Nesse processo acelerado, o setor de serviços já responde por mais de 40% do produto total e absorve tantas pessoas quando o secundário - conseqüência também da rápida urbanização, que nas últimas décadas incorporou à população das cidades mais de 200 milhões de pessoas e pretende incorporar outros 300 milhões em poucas décadas mais. É difícil até imaginar o que significará a expansão do consumo com mais esse contingente urbano, equivalente a uma vez e meia a população brasileira. Mas certamente implicará forte pressão sobre o uso do solo, da água e outros recursos e serviços naturais para prover os alimentos e outros bens que esse contingente deixará de ter no campo, assim como sobre o consumo de energia (a China já responde por 12,7% das emissões globais de dióxido de carbono e planeja implantar mais de 500 usinas que utilizarão combustíveis fósseis).

Os dados mais recentes dizem que mais de um terço do território chinês já enfrenta problemas graves de erosão. O país perdeu mais de 1,6 bilhão de toneladas de solo por esse motivo em 2004, segundo a Agência Xinhua (Gazeta Mercantil, 28/12/2005) - o que é muito grave, já que a China, com mais de 20% da população mundial, só tem 10% da terra arável do planeta. Também o sobreuso de água é problemático: o país, segundo o Ministério dos Recursos Hídricos, consome cinco vezes mais água que a média mundial.

Não surpreende, assim, que o recém-publicado Estado do Mundo 2006, do WorldWatch Institute, coloque ênfase nessa questão e mostre o quanto tenderá a crescer a pressão chinesa e indiana, no mundo, sobre a produção de alimentos, de petróleo, produtos florestais e pesqueiros, entre outros. Sozinha, a China, lembra a publicação, já responde pelo consumo de 32% do arroz produzido no mundo, 47% do cimento e 26% do aço. Mas só tem 8% da água superficial do planeta, para 22% da população global. E na Índia a demanda urbana por água deve duplicar até 2025; a demanda industrial, triplicar.

Na abertura de sua mais recente reunião, a Comissão Econômica e Social da ONU para a Ásia (Unescap) advertiu que "o atual padrão de crescimento econômico constitui forte ameaça à sustentabilidade ambiental na Ásia e na região do Pacífico; o desafio está em como crescer e reduzir a pobreza sem comprometer essa sustentabilidade". O secretário-executivo da comissão, Kim Hak-Su, chamou a atenção para os níveis preocupantes de poluição da água, de devastação florestal e dos ecossistemas costeiros, alterações nos fluxos hidrológicos e dificuldades no manejo de resíduos sólidos.

E não é só na chamada área ambiental que o crescimento econômico nessa parte da Ásia tem reflexos importantes no mundo. Na área dos custos da mão-de-obra esses reflexos são cada vez mais evidentes. O salário médio na indústria chinesa está em US$ 100; nas pequenas e médias empresas, de US$ 60 a US$ 80 - padrões que correspondem a um décimo de seus similares nos países industrializados. E as indústrias ali já absorvem 300 milhões de pessoas, que trabalham dez horas por dia, seis dias por semana.

Comparações nessa área são complicadas, porque os trabalhadores chineses, em grande parte, ainda têm benefícios da era socialista - casa, transporte, educação, saúde e outros itens gratuitos. Mas os padrões monetários influenciam os preços no mundo todo. E ajudam a segurar a remuneração dos trabalhadores em países concorrentes e a inflação nos países industrializados. Também, como observa o professor José Pastore (Estado, 10/1, B2), se traduzem em mais ganhos para as empresas transnacionais (que preferem produzir lá). E, pode-se acrescentar, ajudam estas a reduzir suas emissões de gases que intensificam o efeito estufa. Só os Estados Unidos, com essa transferência de atividades e a importação de produtos chineses em geral, deixou de emitir 1,7 bilhão de toneladas anuais de dióxido de carbono. Mas a transferência pode significar também desemprego nos países com padrões salariais mais elevados.

Todas essas questões levaram recentemente o professor José Augusto Pádua a dizer (O Eco, 2/1) que as relações da China com a América Latina (AL) podem "provocar uma tragédia ambiental". Aqui. E, pior, "com o beneplácito das elites locais que não conseguem enxergar além do lucro monetário de curto prazo". É uma postura que, segundo ele, "reforça os aspectos mais devastadores da nova dialética de países fornecedores de matérias-primas". Ou seja, o velho modelo exportador de produtos primários e/ou de pequeno valor agregado, sem controle dos preços, se reforça, e agora com uma nova demanda avassaladora. Pior ainda, no caso brasileiro, com a transferência para cá de algumas atividades altamente poluidoras (exemplo: termoelétrica utilizando carvão mineral chinês) ou fortemente subsidiadas (ferro gusa, alumínio).

Retorna a pergunta: quais são a visão governamental e a estratégia brasileira em relação a esta área?