Título: Para índios, folha de coca é alimento e medicamento
Autor: Lourival Sant'Anna
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2006, Internacional, p. A20

Instrumento ritual, planta também serve de base para cosméticos

Não é por acaso que os índios aimarás chamam a folha de coca, um pouco edipianamente, de Inal Mama, uma divindade feminina e materna, que tudo provê. Para diversas etnias da Bolívia, Peru, Colômbia e Equador, a coca significa tudo: o alimento, o remédio e o sagrado.

Quando têm de tomar uma decisão importante, os índios consultam a folha de coca, por intermédio do xamã. Quando têm fome, estão cansados ou deprimidos, sentem dor ou celebram algo na comunidade, os índios akhullikan (mascam) a coca.

De acordo com Walter Mamani, diretor-geral de medicina tradicional do Ministério da Saúde, a folha de coca contém mais calorias do que a batata e a mandioca e mais do dobro de proteínas do milho, do arroz e da cevada. Citando um estudo de 2003 da Organização Mundial da Saúde, Mamani afirma que 100 gramas de folha de coca contêm 304 calorias, 19,9 gramas de proteína, 2.097 miligramas de cálcio, 9,8 miligramas de ferro, e ainda fósforo e vitaminas A, E, B1, B2 e C.

"Fui feito à base de folha de coca", brinca Mamani, de 40 anos, filho e neto de pajés da província de Mancokaapac, terra original dos incas.

Mamani diz que, para um consumidor pesado como seu pai, Gerardo, de 80 anos, agricultor e curandeiro de traumas ortopédicos, um saco de meio quilo de folha de coca, que custa 20 bolivianos (US$ 2,50), dura uma semana.

Com a folha, pode ser feita uma farinha que serve de complemento alimentar e energético, vinho, refrigerante, goma de mascar, balinha e sorvete. Ela também pode servir de base para ração animal.

No livro que deve lançar em breve sobre os benefícios da folha de coca, Mamani lhe atribui as seguintes propriedades: afrodisíaca, emagrecedora, analgésica, anestésica, antiasmática, antibiótica, anticancerígena, antidiarréica, antidiabética, antigripal, antivômito, bactericida, cardiotônica, cicatrizante, depurativa, digestiva e diurética.

A coca é matéria-prima ainda para sabonete, xampu, pasta de dente e pomadas. Na Bolívia, há muitos laboratórios artesanais de cosméticos. Numa iniciativa privada, Mamani está criando o primeiro em escala industrial, cujo carro-chefe será um sabonete à base da folha de coca. De acordo com ele, o sabonete tira manchas, elimina espinhas, acaba com a caspa, fortalece o cabelo e tem efeito desodorante.

Em entrevista ao Estado na quarta-feira, o novo chanceler David Choquehuanca disse que o governo vai lançar uma campanha internacional de esclarecimento dos benefícios da folha, para distingui-la da cocaína.

"Precisamos estabelecer um intercâmbio entre as medicinas tradicionais andina e amazônica", diz Rubén Urquizo, médico naturalista de uma comunidade quíchua em Cochabamba, 750 quilômetros a leste de La Paz.

Os médicos naturalistas bolivianos - quase 12 mil, segundo Mamani - são formados em suas comunidades, pelos mais velhos. Não há ainda uma universidade, mas, segundo Mamani, isso está nos planos, assim como a criação de um Ministério da Medicina Tradicional, separado do da Saúde.