Título: Haniye é a cara do Hamas nas urnas
Autor: Daniela Kresch
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2006, Internacional, p. A18

N º 1 da lista do partido, cotado para ser o primeiro-ministro, é da ala moderada e sobreviveu a ataque de Israel

Há dez anos, nas primeiras eleições legislativas palestinas, o jovem militante Ismail Haniye, então com 34 anos, fez uma proposta à direção do movimento islâmico Hamas: que tal concorrer nas urnas pelos corações e mentes dos palestinos? A resposta que ouviu foi um sonoro não. Haniye foi chamado de ¿traidor¿ e ¿colaborador de Israel e dos Estados Unidos¿, por, teoricamente, se vender aos ideais democráticos ocidentais.

Um década depois, Haniye, um dos integrantes mais moderados e líder da ala jovem do Hamas, se tornou o principal nome do grupo radical. Com a esmagadora vitória do movimento nas eleições parlamentares de quarta-feira, ele é o candidato número 1 à cadeira de primeiro-ministro palestino. Mais do que o Hamas como um todo, Haniye e a ala jovem do grupo extremista são os grandes vencedores das eleições.

Na estrutura do Hamas, o poder é exercido por uma espécie de triunvirato. O jovem Haniye é responsável pelo braço político do grupo radical nos territórios palestinos, enquanto Khaled Maashal, que está exilado em Damasco, na Síria, fica com a liderança internacional. O terceiro pé do triunvirato é Mahmud A-Zahar, de 53 anos, responsável pelas ações armadas do grupo extremista contra ¿o inimigo sionista¿. A-Zahar, apesar de relativamente jovem, representa a velha-guarda do Hamas. Ele é bem mais radical em sua visão do passado e do futuro do grupo e da região. Também é bem mais religioso e enfatiza as raízes islâmicas do Hamas, faceta que muitos eleitores do grupo preferem ignorar.

Ninguém sabe prever quais serão os desdobramentos da vitória de quarta-feira dentro do próprio Hamas. Se o passado recente é algum guia, Haniye será a cara do novo governo. Isso porque ele venceu a última briga interna. Pelo sistema parlamentarista, o candidato a primeiro-ministro encabeça a lista apresentada aos eleitores. Na quarta-feira, era o nome de Haniye que aparecia em primeiro lugar. E estava lá mesmo depois de A-Zahar, o religioso, ter tentado afastá-lo. Haniye não apenas manteve a primeira posição na lista como acabou empurrando A-Zahar para o nono lugar.

Nascido no campo de refugiados de Shatti, na Faixa de Gaza, Haniye ingressou no Hamas ainda adolescente. Aos poucos, foi se tornando extremamente popular, principalmente por sua proximidade com o fundador e líder espiritual do Hamas, xeque Ahmed Yassin, assassinado em março de 2004 por um míssil israelense. Haniye, que foi assessor direto de Yassin e chefe de seu gabinete, estava perto do líder espiritual na hora do ataque e por pouco não morreu com ele. Um mês depois, foi a vez do sucessor de Yassin, Abdel Aziz Rantissi, também ser eliminado por Israel, o que provocou um vácuo de poder dentro do Hamas e fez com que o grupo radical decidisse não nomear apenas um líder supremo, mas o atual triunvirato.

¿Hamas¿, em árabe, quer dizer ¿ardor¿. As letras também formam a sigla do Movimento de Resistência Islâmico. O grupo radical foi fundado em 1988 pelo xeque Ahmed Yassin como uma espécie de facção do movimento islâmico egípcio Irmandade Muçulmana. Mas, aos poucos, foi tomando contornos próprios, cultivando dois lados de uma mesma moeda: ajuda assistencialista a pobres e luta armada contra a ocupação israelense. Yassin acreditava no Islã como solução para todos os problemas, sociais e políticos.

O Hamas começou justamente pelo lado social: construção de creches, escolas e centros comunitários. Yassin acreditava na educação como pilar da formação de uma nova geração de palestinos religiosos e inconformados com a presença dos judeus no Oriente Médio. Hoje, estima-se que o Hamas invista nada menos do que US$ 70 milhões anualmente numa extensa rede de serviços sociais, que financia escolas, orfanatos, clínicas de saúde, mesquitas, centros esportivos e de caridade em Gaza e na Cisjordânia. O dinheiro vem de palestinos exilados, além de doadores privados na Arábia Saudita e no Golfo Pérsico em geral. Os governos do Irã e da Síria também repassam fundos.

Ironicamente, o governo israelense viu com bons olhos a formação do Hamas. No final da década de 80, os maiores inimigos dos israelenses eram outros: os militantes da Organização de Libertação da Palestina (OLP). O Hamas seria, então, um contrapeso. Mal sabiam os israelenses que isso acabaria acontecendo, mas 27 anos depois, nas eleições legislativas palestinas de janeiro de 2006, quando a OLP já havia se tornado parceira em negociações de paz sob a batuta do ex-presidente palestino Yasser Arafat (que morreu em novembro de 2004).

Após o começo social, o Hamas passou a investir na resistência armada a Israel. No manifesto do grupo radical, ficam claras as intenções de seus líderes: a destruição total de Israel e a criação de um Estado palestino da Jordânia ao Mar Mediterrâneo governado pela Sharia, a Lei Islâmica. Em 1989, o Hamas começou a seqüestrar soldados israelenses e atacar civis e jornalistas estrangeiros. Foi em 1993, no entanto, que o Hamas inaugurou o tipo de ação que viraria sua marca registrada: atentados suicidas.

Desde então, o Hamas já admitiu o assassinato de mais de 500 israelenses, civis e militares. Atentados em ônibus em Jerusalém e Tel-Aviv passaram a ser comuns, mesmo em meio às negociações de paz entre Arafat e o ex-primeiro-ministro Yitzhak Rabin que levaram à criação da Autoridade Palestina (AP) em 1994.

O Hamas nem sempre foi popular entre os palestinos e passou por várias crises internas. Em 2005, sob inspiração principalmente de Ismail Haniye, o partido decidiu se renovar, voltando-se para a disputa política. Aceitou um cessar-fogo com Israel e se organizou para concorrer nas eleições locais e nacionais. Deu certo. Hoje, o Hamas tem prefeitos em quase todas as grandes cidades palestinas e domina o Parlamento nacional.

Mas o sucesso do Hamas está diretamente ligado ao fracasso do partido governista Fatah, do presidente Mahmud Abbas, cuja imagem de corrupção e ineficiência afastou os votos dos eleitores. A vitória pessoal de Haniye e da ala jovem do Hamas contrasta com a derrota e a humilhação sofridas pelo presidente Mahmud Abbas, de 71 anos, representante da velha guarda do partido.

Integrantes da jovem guarda, líderes com idades entre 40 e 50 anos como Marwan Barguti, Jibril Rajoub e Mohammad Dahlan, culpam Abbas e seus colegas pela queda do partido. Segundo eles, a cúpula da Fatah enriqueceu com o dinheiro público e se tornou alheia às aspirações do povo, frente a bajulação internacional, interpretada como traição diante dos Estados Unidos e de Israel.

A briga interna das várias facções da Fatah ¿ algumas armadas como as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa ¿ acabou criando uma repulsa popular expressa em votos para o Hamas, que simbolizaria uma mudança no status quo. A Fatah (Conquista, em árabe), sigla do Movimento Palestino de Liberação Nacional foi criada por volta de 1958 por refugiados palestinos no Egito. O mais conhecido deles era o líder estudantil Yasser Arafat.

Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, a Fatah começou a ocupar lugar de destaque na política palestina, ao mesmo tempo em que apertava no acelerador dos ataques contra israelenses na Europa e no Oriente Médio. Em 1969, a Fatah se uniu à OLP, ganhando a liderança do grupo.

Depois de anos no exílio, a liderança da Fatah desembarcou em 1993, em grande estilo, nos territórios palestinos. A volta foi prevista pelos Acordos de Oslo como o primeiro passo para a criação de um Estado Palestino vivendo lado a lado com Israel.

Dois anos depois, nas primeiras eleições parlamentares da recém-criada Autoridade Nacional Palestina, a Fatah recebeu nada menos do que 80% dos votos, consagrando-se como porta-voz supremo dos palestinos.

Mas esse monopólio acabou. O tabuleiro político palestino mudou com a vitória consagradora do Hamas na semana passada. Agora, o jogo está dado. O futuro dirá quem chegará ao xeque-mate.