Título: Dúvidas e indefinições
Autor: Marco Aurélio Nogueira
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

É verdade que as urnas de outubro ainda estão longe, mas as dúvidas e indefinições que cercam a próxima disputa são numerosas demais.

Ainda não se sabe, por exemplo, quem concorrerá pelos diferentes partidos políticos. A polêmica em torno da obrigatoriedade de se repetirem nas disputas estaduais as coligações partidárias feitas na disputa presidencial - a verticalização - parece encerrada após a rejeição da cláusula pela Câmara dos Deputados, mas é um indício de como andam as regras eleitorais. Há indefinições também quanto ao financiamento das campanhas e à propaganda eleitoral. A falta de entendimento e de clareza chega ao conjunto da população, que depois da crise de 2005 se mostra ainda menos receptiva aos políticos e aos partidos.

Pode-se considerar como praticamente certa uma nova candidatura de Lula, que tem mostrado disposição de lutar por um segundo mandato como forma de limpar a imagem de seu governo. Mas Lula não é, como sabemos, um político propriamente de esquerda, e sim um ativista formado na escola do sindicalismo, com horizontes ideológicos não bem definidos e orientações políticas imprecisas. Não há como prever qual Lula aparecerá nas eleições nem que respaldo efetivo ele obterá da máquina petista e dos militantes e simpatizantes do partido. Há um clima de confusão e desânimo nesse universo, conseqüência direta da crise de 2005. A liderança de Lula e o fato de ser ele o atual presidente da República inviabilizam o surgimento de outras candidaturas no âmbito do PT, mas não bastam para que se defina o eixo da campanha eleitoral, processo usualmente conturbado nesse partido.

Apesar de enfraquecido pela crise, Lula ainda conta com um expressivo capital político e eleitoral. Até agora, foi bastante preservado das acusações em torno do "mensalão" e ele próprio optou por transferir toda a responsabilidade para o PT. Sua popularidade poderá até mesmo voltar a crescer se o governo conseguir converter em apoio a receptividade que espera obter com seus programas assistencialistas voltados para a população de baixa renda. Também poderá ser beneficiado pelos problemas que têm os principais partidos para escolher seus candidatos.

PT e PSDB não se distinguem mais em termos substantivos. A opinião pública mostra-se tendencialmente saturada pela reiteração de uma polarização que, com o passar dos anos, foi perdendo razão de ser e já não "dramatiza" as disputas eleitorais. Com isso, os dois principais partidos políticos brasileiros correm o risco de chegar às urnas em um quadro de desgaste e cansaço, o que poderá ajudar os candidatos de outros partidos mais bem estruturados - o PMDB, por exemplo - ou uma candidatura populista que se apresente como estando "acima" dos partidos e se projete como paladina da luta contra a corrupção e por mais "proteção social".

Seja como for, o processo não terá como se afastar muito da polarização que tem prevalecido na vida brasileira desde o início da década de 1990, que opõe duas postulações reformadoras de centro-esquerda, uma encabeçada pelo PT - mais aberta ao mundo social e a compromissos com o associativismo tradicional - e outra pelo PSDB, mais dedicada à reforma do Estado e à introdução de novas modalidades de gestão estatal e de organização da economia. São postulações que, vistas a frio, isto é, fora das disputas políticas imediatas, podem ser aproximadas de um programa social-democrático, pois se mostram igualmente sensíveis - ainda que de modo distinto - ao binômio desenvolvimento-inclusão social e aos valores da democracia.

Tem-se, portanto, uma situação potencialmente positiva. Tudo dependerá, porém, das candidaturas. Um candidato do PSDB que venha pela direita, por exemplo, e reforce o lado mais tecnicista e menos ideológico desse partido tenderá a neutralizar o debate democrático, forçando o eleitor a comparar estilos de gestão mais que idéias de país e de mundo. Uma candidatura Lula, por outro lado, que se limite a fazer a defesa de seu governo, que não invista em autocrítica e que não reveja as bases de sua coalizão tenderá a levar o debate a um ajuste de contas meramente adjetivo. Tanto num caso como em outro, nada acontecerá em termos de educação da cidadania ou de fortalecimento da democracia. Dar-se-á o mesmo caso o processo fique amarrado ao tema da moralização.

As eleições de 2006 poderão ajudar a que uma política democrática e de esquerda dialogue com a população, fazendo sentido e dando uma perspectiva de futuro para os mais pobres. Ao final do ano, o Brasil terá um novo presidente, novos governadores e um novo Parlamento, mas os desafios e os problemas permanecerão. Não é de se prever uma guinada à direita, e as chances de um populismo à moda antiga parecem reduzidas, ainda que não possam ser descartadas.

Tudo indica que o Brasil continuará a ser governado por alguma modalidade de centro-esquerda, administrando seu mal-estar institucional e sem apertar o passo em direção a uma incorporação social expandida. A situação é incerta sobretudo porque a sociedade se desmobilizou com a crise e porque a crise, por sua magnitude, fez com que o imaginário social voltasse a confiar em lideranças providenciais ou eminentemente "técnicas", gerenciais. Não há por que vislumbrar no curto prazo um País necessariamente melhor depois de passado o vendaval que desmontou o governo Lula e aprofundou a crise do sistema político. Mas o Brasil não está à beira do precipício nem sua democracia se encontra sob ameaça.

Se privilegiarmos, porém, o revigoramento da cidadania política, a reforma democrática do Estado, a politização, a reestruturação social do País, então será preciso examinar em que medida as esquerdas e os democratas progressistas saberão dialogar entre si, rever procedimentos e convicções e interpelar os novos termos da vida moderna e do capitalismo globalizado. Nesse caso, teremos de verificar se a crise da esquerda - que hoje é um fenômeno mundial - evoluirá em sentido positivo e produzirá frutos no Brasil. O futuro, portanto, está aberto.