Título: A castidade, o capital e a caridade
Autor: Mario Sergio Conti
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Aliás, p. J5

Uma encíclica, duas indicações: a salvação está no assistencialismo; e o prazer pode até estar no sexo - desde que monogâmico e heterossexual

A primeira encíclica de Bento XVI foi recebida com um misto de incompreensão e frieza. Incompreensão porque o papa rompeu com a tradição, acentuada pelo seu antecessor imediato, de usar a encíclica inaugural para fixar o programa do seu pontificado. Logo depois da sua eleição, em 1978, João Paulo II definiu em Redemptor Hominis ("Redentor do Homem") o que viria a ser o conteúdo do seu papado: o combate ao comunismo. A incompreensão se acentua pela fama com que o cardeal Ratzinger chegou ao posto máximo da Igreja Católica - a de guardião feroz ("pastor alemão") da ortodoxia vaticana.

Deus Caritas Est ("Deus É Amor") foi recebida com frieza devido à sua natureza, quase que oposta às encíclicas de João Paulo II. O estilo do papa polonês era místico e visionário. Já a escrita do alemão é meditativa e carregada de argumentos. Karol Wojtyla proclamava certezas, a serem seguidas fielmente pelo rebanho. Joseph Ratzinger avança aos poucos, pondera, incorpora raciocínios de adversários, dialoga com idéias opostas e quase não dá orientações diretas aos católicos.

A encíclica tem uma construção curiosa. A primeira parte discorre sobre o amor. A segunda, mais política, versa sobre a caridade. O arcebispo Paul Josef Cordes, um dos principais assessores do pontífice, disse que essa parte é uma criação absoluta do papa. Na segunda, Bento XVI trabalhou sobre um esboço deixado por João Paulo II, que preparava uma encíclica dedicada à caridade.

Na dissertação sobre o amor, Bento XVI toma partido da literatura católica que coloca o amor carnal como fundamento da existência humana e via para a comunhão com a divindade. Sua discussão do tema é abstrata e conceitual. O texto papal não usa nenhuma vez os termos "divórcio", "contracepção" e "homossexualidade". Mas, ao colocar o amor "entre homem e mulher" num plano superior, Bento XVI toma partido em questões que preocupam os católicos. É o caso da união civil entre homossexuais, que foi aprovada recentemente no Canadá, na Espanha e na Inglaterra. Se o amor heterossexual, e monogâmico, é o fundamental, a conclusão lógica é que o casamento homossexual, bem como o divórcio, é pecaminoso e condenável.

Apesar disso, a concepção de amor de Bento XVI tem algo de leve, de liberal. Ao contrário de São Paulo ou de Santo Agostinho, o papa não considera o sexo como intrinsecamente negativo, quando exercido para fins não-reprodutivos. Ele reconhece, e enaltece, o conteúdo impulsivo do amor corporal (sejamos claros: da fornicação). O papa elogia o prazer físico, a sua gratuidade e a sua graça. E seu assessor, Josef Cordes, foi além, se adiantando às ironias laicas que apontam o paradoxo de senhores castos se meterem a dar palpites sobre uma atividade humana que supostamente nunca exerceram: o sexo. Segundo o New York Times, monsenhor Cordes brincou com repórteres dizendo que um padre celibatário falando de sexo é como "um cego falando de cores".

A segunda parte da encíclica é diretamente política. Nela, Bento XVI demonstra o quanto está atento à situação econômica e social do planeta. Ao contrário dos políticos brasileiros (inclusive os que se dizem de esquerda), ele usa termos como "estruturas de produção" e "capital", fala da "privação de direitos" das "massas operárias" e reconhece a pertinência da crítica marxista à caridade. O papa reconhece candidamente que o cristianismo primitivo praticava uma forma de vida social radicalmente igualitária. Admite também que, com o advento do capitalismo industrial, no século 19, "os representantes da Igreja só lentamente se foram dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade".

Implicitamente, Bento XVI admite que, para além dos dogmas pétreos, a doutrina social católica é reativa. A Igreja reage a formas históricas concretas e determinadas. Ele não afirma abertamente, mas "Deus é amor" soa como o fechamento do ciclo iniciado por João XXIII no Concílio Vaticano II. É certo que todo o pontificado de João Paulo II foi de batalha contra a concepção teológica da opção preferencial pelos pobres, das estruturas que lhe eram decorrentes, como as pastorais operárias e as comunidades eclesiais de base e das suas figuras-chave - Hélder Câmara, Leonardo Boff e Frei Betto, no Brasil, Ernesto Cardenal, ministro sandinista na Nicarágua, Cesar Romero, o bispo mártir de El Salvador. Karol Wojtyla acabou com a Teologia da Libertação e botou no lugar o anticomunismo. Com o fim do stalinismo, a Igreja ficou sem doutrina social explícita.

Agora, com Deus Caritas Est, ela tem uma alternativa a oferecer: o assistencialismo. Bento XVI postula a participação dos católicos na política de maneira individual, enquanto cidadãos. E defende que eles não se engajem na transformação da sociedade, na defesa dos interesses dos trabalhadores e tampouco que tenham a justiça social como norte. Tudo isso, diz o papa, pertence à esfera da política. Mas ele prega a participação das estruturas eclesiásticas entre as "muitas organizações com fins caritativos ou filantrópicos, que procuram, face aos problemas sociais e políticos existentes, alcançar soluções satisfatórias sob o aspecto humanitário". Embora a sigla não seja enunciada, parece razoável supor que Bento XVI esteja se referindo às ONGs, às organizações não-governamentais, um fenômeno recente, planetário e em expansão.

Há ONGs de todos os tipos, para todos os gostos - ambientalistas, filantrópicas, assistencialistas, educacionais, de defesa de minorias étnicas, de gêneros sexuais, de corporações, de animais (em extinção ou não), de comunidades urbanas, rurais e indígenas, de populações específicas. O que não muda é a forma de financiamento de todas elas. A sua maioria é financiada por grandes empresas, por organizações multinacionais (Banco Mundial, Nações Unidas, FMI, União Européia, etc.) e por Estados nacionais. A existência material das ONGs depende das instituições do capitalismo globalizado.

As organizações não-governamentais são produto direto do sucateamento das estruturas estatais. Onde o Estado, por exemplo, não consegue dar moradia aos pobres, surgem logo ONGs para cuidar de meninos de rua. Onde o Estado se empenha em destruir a estrutura do ensino universal e gratuito, espoucam ONGs para garantir a qualidade de determinadas escolas. As ONGs, assim, surgiriam para compensar o sucateamento e a privatização de setores do Estado - sucateamento e privatização que são necessidades do capitalismo globalizado.

Há, por fim, o dado mais evidente, sobre o qual Bento XVI se apóia: frente à persistência da miséria e da iniqüidade, que faz par com a falência da ideologia do progresso e da perspectiva utópica (leia-se: o socialismo), nem por isso desaparece a vontade de estar ao lado das vítimas da organização econômica e social. Não para que eles consigam a sua emancipação. E sim para que tenham um reconforto mínimo. Não é por outro motivo que o Fórum Social Mundial, em Caracas (financiado diretamente por Hugo Chávez e indiretamente por multinacionais), está repleto de idealistas, em busca de não sabem bem o quê.