Título: Não adianta: somos horizontais
Autor: Renato Lessa
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Aliás, p. J6

Diante da vida-como-ela-é, exigir consistência dos nossos partidos é exercício puramente estético

Nos idos de 2002, o deputado Miro Teixeira, dirigiu a seu fraterno amigo e correligionário de crenças institucionais, o então presidente do TSE Nelson Jobim, uma consulta a respeito da alquimia das coalizões eleitorais no País e do modo de discipliná-la. Fê-lo imbuído da opinião de que, sendo os partidos políticos entes aos quais se exige um padrão mínimo de nacionalização, todas as suas partes - isto é, seções regionais - deveriam comportar-se nas eleições como se partes não fossem, mas como miniaturas da totalidade. O finado Althusser, referindo-se ao sistema filosófico do mais-que-finado Hegel, dizia que este concebia o mundo como uma totalidade na qual seus componentes não seriam senão expressões e, em assim sendo, "partes totais". Hegel à parte, os partidos em sua dimensão regional, segundo leitura filosófica da opinião compartilhada pelo deputado e pelo magistrado, são "partes totais" de sua expressão nacional.

Opiniões de magistrados, com freqüência, acabam por decantar em normas e prescrições legais. E assim se fez a verticalização entre nós: a coalizão nacional estabelece os limites de variação possíveis para suas correspondentes estaduais. Por um ato iluminado, a consistência que não nos havia freqüentado nos séculos precedentes fez-se presente, agora como norma constitucional. Com certeza, ela foi fundamental para a pujante consistência dos governos eleitos em 2002 (federal e estaduais), assim como para a que se manifesta nas relações entre Executivo e Legislativo.

Para espanto da malta crédula na pureza das instituições, as eleições municipais de 2004 deram azo à criatividade em matéria de coligações. A ninguém ocorreu o sequitur de que, dado o sinal de purificação em 2002, seria razoável que as coalizões municipais seguissem às que se apresentaram dois anos antes para as eleições dos governadores.

Imagine o leitor o saldo de ordem, consistência e republicanismo.

Mas, fora desse cenário hipotético-demencial, os partidos adaptaram-se à norma de 2002. O PFL, por exemplo, viu a já implodida candidatura de Roseana Sarney, graças ao zelo contumaz da Polícia Federal, tornar-se uma impossibilidade e acabou por manter com o PSDB o bloco da ordem. O PMDB, mais do que feliz, seguiu a sua natureza. Eximiu-se da disputa nacional e dedicou-se à poligamia em escala federal. (Se há algo previsível na política brasileira, trata-se da certeza de que o PMBD estará na base de apoio do próximo governo.) O então futuro bloco da ordem acrescentou a seu núcleo histórico - coalizão PT-PCdoB - a presença apaziguadora do PL. Nas margens da disputa, PPS e PSB lançaram candidatos próprios, com olho no crescimento das bancadas e em posições vantajosas para negociação no segundo turno.

Feita a eleição, fomos à vida. As artes do autarquismo republicano acabaram confinando a energia cívica das ruas e da campanha de 2002 ao universo opaco das relações entre governo e Congresso. A fenomenologia do mensalão requentou a tradição que estabeleceu o padrão para tais relações e a ela deu contribuição própria e inovadora. Para além do jogo pesado entre governo e oposição, cuja radicalidade é inversamente proporcional à extensão de suas diferenças substantivas, nada na fisionomia dos partidos brasileiros, e de suas bancadas legislativas, revelou algum efeito da correção que teria sido introduzida em 2002.

De tal juízo crítico a respeito das virtudes da verticalização segue-se agora, dada a derrubada do princípio pela Câmara de Deputados (em primeira votação), a sensação de que avançamos e de que uma decisão equivocada e tomada há quatro anos foi corrigida?

Quero crer que não. O ceticismo quanto às virtudes da verticalização não conduz de modo necessário à celebração de sua derrubada. À ilusão da verticalização parece, tão-somente, seguir-se a pujança da espontaneidade, prima-irmã do apetite. O cenário pluripartidário dos semblantes eufóricos dos deputados, fotografados na sessão de 26/1/06, vale por uma peça de elucidação. Em um sistema autárquico, no qual a representação, com freqüência, significa auto-representação, o máximo de liberdade e um mínimo de regras e restrições valem como um bálsamo de Fierobrás.

A aposta inócua e doutrinária nas virtudes da verticalização, se movida por crenças genuínas, expressa, ao menos, um ponto de vista defensável. Sendo a utilidade dos partidos determinada originariamente por sua capacidade de expressar interesses e visões de mundo diversos, um mínimo de consistência em suas combinações não fará mal à vida dos regimes representativos. O que torna a proposição um tanto deslocada, e no limite indefensável, diante da vida-como-ela-é, é justamente o caráter obsoleto de sua premissa maior. Em outros termos, em cenários nos quais a utilidade dos partidos não deriva dos atributos mencionados - mesmo com exceções -, a imposição de consistência acaba por ter uma dimensão puramente estética e voltada para apaziguar mentes movidas pela disciplina de figuras geométricas.

É virtualmente impossível verticalizar, pela via doutrinária e jurídica, sistemas invertebrados e intermitentemente mutantes. Uma vez verticalizados pelo alto, acabam por "horizontalizar-se" por baixo, em suas operações ordinárias. Introduzir princípios de assepsia e nitidez em um cenário movido pelas evidências de satisfação recolhidas pela imagem citada exige mais do que a boa norma jurídica e a virtude auto-atribuída. São as galerias e as ruas que devem com urgência sinalizar à grande autarquia republicana os limites aceitáveis da (in)consistência política.