Título: Fórum Social - uma viagem pedagógica
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

Sou crítico dos estágios disponíveis no Brasil para os estudantes de curso superior, pois seu lado pedagógico é sacrificado em grande número de casos. Muitos empregadores utilizam a isenção de encargos trabalhistas e previdenciários na contratação de estagiários, simplesmente para obter mão-de-obra barata, explorando-a dessa forma e pelo excessivo número de horas trabalhadas, entre outras distorções. Privados de direitos trabalhistas e estudantis elementares, como uma limitação desse número de modo compatível com os estudos, muitos estagiários são transformados em trabalhadores que estudam, embora devessem ser, primordialmente, estudantes que trabalham.

Os sindicatos de trabalhadores ainda não perceberam a concorrência desleal que esses estágios desvirtuados trazem a seus representados. Entre estes, os estagiários não estão incluídos nem têm um "sindicato da categoria" para recorrer. Enquanto isso, paradoxalmente, um governo que se diz do Partido dos Trabalhadores (PT) ignora o problema. É uma pena esse desvirtuamento dos estágios, pois, em tese, seu valor pedagógico é inquestionável, conforme constatei pela minha própria experiência de estagiário.

Outra experiência de grande conteúdo pedagógico são as viagens, em particular as internacionais, e não apenas para estudantes. Nelas, muitos conhecimentos são absorvidos simplesmente pela observação, por exemplo, de como outras comunidades resolvem ou não problemas como os que enfrentamos nas nossas. Nas internacionais, aprendem-se línguas, e em todas há sempre problemas a resolver, como perdas de dinheiro e documentos, atrasos e cancelamentos de viagens.

Como viver é também resolver problemas e aprender, a experiência de viajar tem valor inestimável, particularmente para jovens que viajam sem os pais. Sei de escolas que estimulam o turismo educacional de seus alunos, inclusive incluindo-o no currículo, mas são ainda uma minoria. Os próprios estudantes deveriam ser encorajados por seus pais e professores a viajar mais.

Com essa convicção, li com gratificado interesse a excelente matéria de Roldão Arruda, enviado especial deste jornal ao Fórum Social Mundial, recentemente encerrado em Caracas. Publicada na segunda-feira, narra a saga de um grupo de brasileiros que tentou chegar lá de ônibus, mas por conta de vários problemas a viagem tomou o dobro do tempo esperado, com o que só apareceram no dia final do evento, felizmente sem acidentes sérios, como aquele em que se envolveu um outro grupo de brasileiros.

A viagem foi organizada pelo estudante de filosofia Werley Torres, que, ao planejá-la, tentou cuidar de tudo: contratou um ônibus com três motoristas para se revezarem, consultou embaixadas e centros de informações dos países no trajeto, calculou distâncias, e lá se foi o grupo via Mato Grosso, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, a percorrer um total estimado em 6 mil quilômetros.

O que deu errado: em particular, Werley reconheceu o erro de sua previsão que media os trechos em linha reta, mas depois de passar pelas estradas andinas disse nunca ter visto tanta curva. No final, a caravana percorreu 10 mil quilômetros. E houve mais problemas, de infecções intestinais a uma estrada que os próprios passageiros tiveram de reparar para prosseguir. Na Colômbia houve também o medo de grupos extremistas de direita, mas aí houve o cuidado de jogar fora bandeiras do PT e tudo que lembrasse grupos esquerdistas. A recomendação de autoridades foi falar só de futebol, e a foto que ilustra a matéria mostra o ônibus de frente, com uma bandeira brasileira pregada no vidro, tendo embaixo a legenda "Brasil, rumo ao hexa", provocativa só na Argentina.

A foto também mostra um sorridente Werley, lembrando Zorba, o Grego, que ria diante de dificuldades. Assim, se o grupo perdeu tempo, Werley não "perdeu a esportiva" nem a capacidade de reconhecer erros. Sua preocupação era a volta, que o grupo não queria fazer pelo mesmo trajeto, mas as alternativas eram caras e o dinheiro acabara. Werley, contudo, continuou na dele, otimista, apelando a organizações não-governamentais em busca de ajuda.

Outra experiência importante de uma viagem como essa é a convivência em grupo, de aprendizado indispensável para a vida social, inclusive no trabalho. Aí houve algum estresse, o que também é uma boa experiência. Nas palavras de Werley, depois de afirmar que queria menos discussão na viagem de volta: "Como tínhamos muitos sindicalistas e militantes do movimento estudantil, qualquer dúvida que surgia já queriam transformar numa assembléia, o que só atrasava a viagem. Assim não dá."

Coincidentemente, no mesmo dia este jornal publicou matéria em que o governador do Acre, o petista Jorge Viana, cotado para coordenar a campanha reeleitoral do presidente Lula, se queixou de que "o PT sofre a síndrome da eterna oposição". Imagine-se tocar uma viagem como essa com gente sofrendo dessa síndrome e durante dez dias dentro de um mesmo ônibus...

Não sei como terminou a história e gostaria de que o repórter voltasse ao assunto. Quanto a Werley, pareceu-me uma figura notável. Deve ter voltado outra pessoa, depois de enfrentar e resolver tantos problemas. Pareceu-me um desses estudantes ativos, com iniciativa e talento para organizar eventos, viagens e comemorações, e que depois de formados costumam sair-se bem em tarefas administrativas, seja em negócios próprios ou como empregados. Se fosse seu professor e a viagem fosse considerada para medir o aproveitamento no curso, eu lhe daria dez pelo que fez. Não importa se errou, pois todo aprendizado passa por isso; interessa o que aprendeu e cresceu no processo, sem se abater com dificuldades. Parabéns, Werley! Agora você tem muito a ensinar, nesse ou noutros caminhos.