Título: Marajó, uma ilha de apenas 5 mil anos
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Vida&, p. A26

Estudo de brasileiros indica que a separação do continente é recente e guarda marcas na paisagem e na fauna

A Ilha de Marajó carrega sinais de um tempo em que a Amazônia não era esse mar de floresta (hoje pontuada por várias áreas desmatadas) que se conhece atualmente. Até o início do Holoceno, época geológica que começou há cerca de 11 mil anos e se estende até hoje, o clima da região era mais seco do que o atual. Isso por causa da glaciação, fenômeno que mudou a temperatura global e manteve boa parte da água do planeta na forma de gelo. Havia floresta, mas provavelmente estava retraída em alguns pontos, como no leste do Peru e ao longo dos rios.

A principal evidência de que a região era parecida com o cerrado atual é a presença de megafauna, animais gigantes que não existem mais. Fósseis de mastodontes e preguiças-gigante foram encontrados em boa parte da Amazônia Ocidental, e nos últimos tempos, esses exemplares também apareceram em escavações (arqueológicas e acidentais, feitas por mineradores) no centro e no leste, inclusive em Marajó. "Esses eram animais com hábitos de savana", explica o paleontólogo Alceu Ranzi, especialista em paleofauna amazônica.

Houve mudança com o fim da era glacial, quando a temperatura subiu e a água, retida em gelo, se converteu em precipitação. O clima mais úmido estimulou a expansão da floresta tropical e coincidiu com a extinção dos grandalhões.

Mais estudos sobre o tema são necessários, como outras escavações em busca de mais fósseis e a análise de amostras de pólen da época - ferramenta bastante útil para a reconstrução climática de uma era, mas ainda incipiente no Brasil. "Inferimos o passado a partir do que vemos hoje, mas é possível trazer o passado de volta com a geologia e a análise do ambiente", diz Ranzi. C.A.É um quebra-cabeça de 11 mil anos, com peças que não podem ser colocadas sobre a mesa e que funciona de trás para frente. Mesmo assim, é motivo de diversão e traz surpresas, especialmente para a geóloga Dilce Rossetti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que remonta a história da Ilha de Marajó e descobriu que ela se separou do continente em um período bem recente, há cerca de 5 mil anos.

Em termos geológicos, cinco milênios é um espirro de tempo. Lembrando, a Terra tem 4,5 bilhões de anos e América do Sul e África começaram a rachar há 200 milhões de anos.

Até 11 mil anos atrás, a Amazônia tinha grandes áreas de savana, com representantes da megafauna, como preguiças-gigantes e mastodontes, passeando por lá. Marajó era parte do continente. Tinha um terreno instável, com alto dinamismo geológico, e o Rio Tocantins cortava a área no sentido norte. Até que uma falha sísmica levou o rio a correr por um novo caminho, para o nordeste.

"A gente tende a pensar que o Brasil não tem movimentos tectônicos, que não tem terremotos, por exemplo, o que não é verdade. A Amazônia passa por muitos terremotos leves, só que eles acontecem em áreas remotas, sem ocupação humana, então não são sentidos", explica ela. "Só que o sistema de drenagem é orientado, alinhado mesmo, pelo sistema de falhas."

Essa primeira modificação aconteceu no começo do Holoceno, época histórica que começou há cerca de 11 mil anos e se estende até hoje. Ela é marcada pelo fim da última Era do Gelo e por intensas mudanças climáticas no mundo inteiro - inclusive onde atualmente está o Brasil.

Alguns poucos milhares de anos depois, outra falha criou o Rio Pará, que atualmente corre ao sul da ilha, separando totalmente Marajó do continente. Mais um rearranjo aqui e acolá e formaram-se os quase 50 mil quilômetros quadrados da maior ilha fluviomarinha do mundo. As datas agora serão validadas por testes de carbono 14 do material tirado de lá.

PROVAS

O Tocantins começou a correr para outro lado, mas deixou uma marca no solo: os paleocanais onde antes corria o rio e seus afluentes. Para vê-los, é preciso ter olhos treinados, mas é possível perceber mudanças na cobertura vegetal quando se olha imagens de satélite.

Mais do que isso, o sistema antigo do rio deixou outra marca na paisagem da região, essa clara até mesmo para um leigo: a floresta tropical. A rede de drenagem que havia na região respondeu ao aumento da umidade, provocada pelo fim da era glacial, assim como no restante da Amazônia. As partes da ilha que não eram influenciadas pelo rio mantiveram a savana.

"Mantiveram" porque, também em Marajó, havia savana naquela época. Campos abertos propiciavam o trânsito de bichos, como tenta comprovar uma equipe de cientistas paralela à de Dilce.

O grupo, do Museu Goeldi, estuda o genótipo de uma espécie de veado campeiro isolada em Marajó, que será comparado ao de animais predominantes em áreas mais a sul do País. Se comprovado o parentesco, essa é mais uma evidência de que a ilha era grudada no continente e que a vegetação então era aberta o suficiente para que os bichos transitassem.

O trabalho de Dilce não pára aqui. Ele é uma parte de um projeto maior, financiado pela Fapesp, que une geologia e biologia para entender a dinâmica de Marajó - e quiçá replicar o modelo para outras áreas da Amazônia.