Título: O drama da América Latina
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

O drama da América Latina (AL) tem nome muito conhecido: a instabilidade política que persegue seus países desde a data remota da independência, nos idos do século 19. A insegurança política perturba o enredo histórico de todos os países latino-americanos, contaminando setores da vida pública e privada, comprometendo a ordem, minando as instituições e sabotando seu progresso firme e continuado. A bem da verdade, repito que o Brasil foi uma exceção. Desde a Proclamação da Independência, em 1822, nosso país contava com uma Constituição estável, um poder soberano visível e concentrado na figura do monarca, o que impunha respeito, Senado vitalício, Câmara de Deputados, códigos de alcance nacional e uma elite dirigente na Corte muito bem treinada. Foram quase 70 anos de estabilidade quase perfeita em comparação com nossos vizinhos, dilacerados nas garras de caudilhos terríveis e façanhudos. Não vai aqui nenhum ranço de monarquismo, apenas a constatação de que a monarquia teve entre nós sua hora e funcionou bem.

A instabilidade política da AL constitui fenômeno tão radical e absorvente que faz pensar em razões estruturais, mais fundas e decisivas do que simples conjunturas políticas. Não é nos Estados ou nos governos que vamos encontrar as raízes daquela instabilidade. Elas se escondem é na própria sociedade, suas razões não são políticas, mas sociais. E isso no sentido forte de "social", relativo à constituição, à anatomia deficiente de nossa organização social e de nossa vida pública. Explicando melhor: as sociedades latino-americanas não têm força para impor uma opinião pública compacta, robusta, imperiosa aos grupos particulares, às classes, à elite econômica, aos particularismos regionais, às associações corporativas, ao Exército. Na falta de uma opinião pública sólida e bem articulada, que funcionasse como o eixo da vida social, esta mergulha na geléia geral, na mistificação das meras opiniões privadas que se querem passar por públicas, sem o lastro da verdadeira e autêntica opinião "pública", a única capaz de estruturar coerentemente o diversificado jogo social e lhe imprimir estabilidade.

O Brasil, após a Proclamação da República, nivelou-se com os demais países da AL, participando daquela mesma instabilidade estrutural que os solapa. Fenômenos políticos explicam-se por razões sociais, as quais, por sua vez, se explicam por razões históricas. A República trocou a identidade nacional do brasileiro pela identidade regional. O brasileiro sentia-se menos como brasileiro e mais como paulista, mineiro, nordestino ou gaúcho. Após a Revolução de 1930, o regionalismo eclipsou-se e nosso país adquiriu condições de forjar sua identidade nacional, supra-regional, da qual emanasse uma opinião pública forte, também de caráter nacional. Mas aí veio o Estado Novo getulista, que sufocou por 15 anos toda opinião pública veiculada por seus órgãos normais, o Parlamento, órgãos de classe, imprensa livre, etc. Após o breve interlúdio da reabertura democrática iniciada em 1946 e culminando com os anos JK, vieram Jânio, João Goulart e o golpe de 64, fechando politicamente a República por mais 21 anos. Somente com a redemocratização pós-64 recuperamos as condições democráticas de forjar uma opinião pública adulta, necessária e suficiente para se impor de modo premente aos diversos grupos particularistas.

No cenário político da AL duas tendências opostas se confrontam presentemente: de um lado, Venezuela, Argentina e Brasil, na pessoa dos presidentes Chávez, Kirchner e Lula, se agarram num abraço de afogados, ensaiando de novo os passos de um filme bastante conhecido, o populismo "cucaracha". Se conseguirem o que prometem, vão atrasar em mais 10 ou 20 anos o futuro dos respectivos países. De outro lado, no Chile, a presidente eleita, Michelle Bachelet, desafia o nacionalismo arcaico dos países menos resolvidos da AL com uma linguagem nova, brilhante de lucidez e ousadia. Recente editorial do Estado reproduz suas palavras incitantes e promissoras: "As agendas do Mercosul e da Alca não são incompatíveis." E mais ainda: "Estamos dispostos a fazer avançar a Alca, o que implica uma maior integração comercial e aduaneira entre todos os países de maneira a gerar mais riqueza e emprego na região e prosseguir na solução de muitos de nossos problemas."

Está escrito no destino da AL que nem o Brasil, nem a Argentina, nem o Chile, nem o México encontrarão, isolados, seus caminhos, separados do conjunto de todos os países americanos. E está escrito também que nossa associação não deve horizontalizar-se com nossos iguais, os países emergentes, mas sim que deve também verticalizar-se com os mais desenvolvidos, Estados Unidos, Canadá e União Européia, por exemplo. Só assim será viável uma integração dinâmica e produtiva que beneficie todos os membros associados, em confronto direto com as diretrizes dos atuais dirigentes de nossa política externa, infantilmente assombrados pela paranóia do "imperialismo americano". Só assim, unidos numa empresa comum, fixado um objetivo a ser alcançado no futuro, preencheremos, finalmente, a ausência daquela opinião pública sólida e atuante que nos falta para estabilizarmos nossa vida política e social, gravitando em torno de um eixo firme e inabalável.

No mundo em rede em que vivemos, regido pela interdependência das nações, a velha soberania nacional será substituída, pouco a pouco, pela soberania compartilhada entre seus membros. Uma espécie de condomínio internacional. O condomínio não ameaça o direito de propriedade. A partilha também não ameaça nem lesa a soberania de cada membro. E agora o mais importante: alguém já viu "imperialismo" dentro de um condomínio? Não? Então vamos enviar ao museu - que é o lugar das reminiscências históricas - o fantasma do "imperialismo norte-americano" e sua retórica anacrônica.