Título: O mistério das baleias que se perdem
Autor: Ricardo Muniz
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Economia & Negócios, p. A24

É difícil esclarecer os extravios de baleias, mas o aumento do número de casos levanta suspeita sobre sonares

Baleia dobra à direita quando deveria seguir reto (ou vice-versa), vai parar no centro de Londres, passa mal e morre ainda na ambulância. Poderia ser letra de rock psicodélico, mas é o roteiro de um acontecimento que mobilizou milhões de espectadores em todo o mundo no último dia 21 - em especial milhares de curiosos apinhados às margens do Rio Tâmisa.

Perdida, isolada do grupo, muito distante de seu território de alimentação no Atlântico Norte e lutando com a baixa profundidade da avenida aquática em que se meteu - o que lhe custa sucessivos encalhes -, ela atrai imediatamente a simpatia da opinião pública. Indiferente à torcida, a desgarrada morre horas depois do início da operação de resgate. Sem nada mais a fazer, especialistas da Sociedade Zoológica de Londres conduzem dias depois uma autópsia que não explica muita coisa: a causa mortis da baleia bicuda (Hyperoodon ampullatus) de 7 toneladas e quase 6 metros foi desidratação. Ela estava obstinada em seguir para oeste, mas pegou um atalho que lhe custou a vida.

Nos últimos dez anos, os registros de encalhes de cetáceos (grupo que abrange baleias e golfinhos) na costa da Grã-Bretanha dobrou. Em dezembro, um grupo de outra variedade de baleias bicudas, as de Cuvier (Ziphius cavirostris) encalhou nas praias da Cidade do Cabo, na África do Sul.

No Brasil, um dos episódios mais recentes foi o encalhe de uma baleia jubarte (Megaptera novaeangliae) em agosto de 2004, em Niterói: após três dias de agonia devidamente televisionada e, apesar do esforço das equipes da Defesa Civil, a baleia de 18 toneladas morreu. As ocorrências tornaram-se comuns na Austrália e Nova Zelândia, onde os maiores encalhes em massa já documentados de baleias ainda vivas envolveram falsas-orcas (Pseudorca crassidens) e baleias piloto (Globichephala melas).

MISTÉRIO

O pior, porém, é que as perspectivas de que tais episódios sejam completamente elucidados não são das melhores. A dificuldade para estudar criaturas que vivem nas profundezas do mar é empecilho para que se entenda minimamente comportamentos atípicos como o da baleia do Tâmisa, que mergulha até 1,4 quilômetro abaixo da superfície. "Há várias hipóteses para explicar os extravios, mas nenhuma comprovada", diz Mario Manoel Rollo Júnior, biólogo que lidera o Grupo de Pesquisas em Ecologia Espacial e Comportamental de Cetáceos da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Uma possibilidade é que as baleias sofram de tempos em tempos verdadeiras panes em seu sistema de eco-localização. Orientando sua navegação pelo perfil geomagnético da Terra, qualquer oscilação de campo causaria manobras potencialmente desastrosas. Barbeiragens durante a perseguição de presas ou a fuga de predadores em águas rasas também não devem ser descartadas. "As baleias também erram", diz Rollo.

Outra explicação é a incidência de epidemias. "Como são animais que andam em grupo, as infecções se alastram com facilidade." Doentes e fracas, é como se as baleias praticassem eutanásia rumando para a praia.

"É possível que, por falta de conhecimento, não se chegue a conclusão alguma sobre a presença daquela baleia no Rio Tâmisa", diz Marcos César de Oliveira Santos, coordenador-geral do Atlantis, projeto apoiado, entre outras instituições, pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. Ele lista mais hipóteses: condições oceanográficas e topográficas locais, como rápidas variações de marés associadas a regiões costeiras repletas de bancos de areia; condições de tempo adversas; capturas acidentais em operações de pesca; ferimentos provocados por equipamentos e explosivos utilizados em pesca, em prospecção de petróleo e gás ou para fins militares.

RUÍDOS E TRÁFEGO CONFUSO

O aquecimento global, também neste caso, pode atuar como vilão. Mudanças de temperatura em correntes oceânicas desorganizariam padrões de migração. Algumas populações de baleias já foram detectadas mudando ligeiramente a rota ao norte para se manter em águas mais geladas.

Mas é a proliferação do uso de sonares que vem atraindo a desconfiança dos ativistas. Ondas sonoras de baixa freqüência viajam centenas de quilômetros, cortando a comunicação entre as baleias. Pode ser também que os sons assustem cetáceos de águas profundas, levando-os a rumar para a superfície rápido demais. Como resultado, surgem bolhas nos tecidos e hemorragia de órgãos internos, ferimentos típicos de um grave acidente de descompressão.

Um episódio na costa da Grécia, em 1996, coincidiu com os dias em que o navio Alliance, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), testava sonares de localização de submarinos. A conclusão de uma pesquisa da Universidade de Atenas foi que a probabilidade de outra explicação para o encalhe de 14 baleias bicudas de Cuvier, senão a ação de sonares da Otan, era de 0,07%.

"Pouco se sabe sobre a reação das baleias a sonares", diz o estudo, publicado pela Nature em março de 1998. "Infelizmente, a maior parte dos dados sobre o uso de sonares é segredo militar." Em setembro de 2002, outro grupo perdeu o rumo e morreu encalhado durante um exercício da Marinha espanhola nas Ilhas Canárias.