Título: Uma lei contra a exaustão médica
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Vida&, p. A22

Projeto de lei quer proibir mais de 12 horas de plantão, para evitar que cansaço ofereça riscos aos pacientes

Para o obstetra Tomás Smith-Howard, de 48 anos, do Hospital Radamés Nardini, em Mauá, Grande São Paulo, aquela foi uma quarta-feira como outra qualquer: seis partos normais, três cesáreas, uma curetagem e 30 consultas. A quinta-feira do cirurgião Carlos Henrique Camilo, de 34, do Hospital Municipal de Guarulhos, também não fugiu à regra: cem consultas e duas cirurgias. Nesses dias, cumpriram plantões de 24 horas, jornadas duras das quais eles não abrem mão há anos, desde que se formaram.

Mas plantões longos podem estar com os dias contados. Acaba de chegar à Câmara dos Deputados um projeto de lei - nº 6.172/05, do deputado Marcos Abramo (PP-SP) - que proíbe mais de 12 horas de plantão. "Um médico cansado não consegue ser bom profissional", justifica o autor.

A avaliação de entidades médicas, como a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), sobre o projeto será divulgada no dia 16, de acordo com Jurandir Marcondes Ribas Filho, presidente da Comissão de Assuntos Parlamentares da AMB. Mas já é possível prever que a classe vai defender como puder a manutenção das horas de trabalho ininterruptas. "O foco do problema tem de ser o bom atendimento. Se o médico tem qualidade de vida no plantão, não importa se ele é de 12 ou 24 horas", avalia Jorge Carlos Machado Curi, presidente da Associação Paulista de Medicina.

COCHILADAS

Um plantão de qualidade para os médicos, diga-se, é aquele que inclui algumas cochiladas e minutinhos de distração. Todo hospital tem lugar reservado para isso. Smith-Howard consegue, em boa parte dos plantões, garantir três horas e meia de sono por madrugada e ver pedaços de noticiários durante o dia. Mesmo com o calor jamais vencido pelo ventilador remendado com fita crepe e a tevê de imagem ruim. "O movimento de pacientes é cíclico, dá perfeitamente para me organizar." O cirurgião Camilo faz uma afirmação parecida. "Aqui é muito quente e tenho colegas que roncam. Mas consigo dormir umas quatro horas", diz, entre as muitas camas desarrumadas do quarto.

Por mais que se tente, fica difícil acreditar que, de fato, dê para os médicos se organizarem em plantões tão longos. E, embora ajam como se isso fosse possível, são surpreendidos muitas vezes por situações complicadas. Às 11h15, quatro horas depois do início do plantão de quinta-feira de Camilo, uma garota de 23 anos que acompanhava o avô apareceu no pronto-socorro do hospital com um diagnóstico na mão. Na guia, uma palavra difícil que precisava ser traduzida: neoplasia (câncer). Às 11h30, o cirurgião passou por ela e disse que já voltava. O avô ficou esperando, encolhido numa maca em lugar improvisado. A neta, mais encolhida ainda, na cadeira ao lado.

Camilo, então, foi para outro canto do pronto-socorro avaliar a dor de barriga de um homem que choramingava. Parecia tentar ganhar tempo antes de revelar o que estava escrito naquele papel. "Uma pessoa não choraminga quando a dor é por uma situação séria", disse, como se estivesse mesmo economizando tempo com aquilo.

Às 11h45, o diagnóstico de câncer foi finalmente dado à menina, ao longo de cinco longos minutos. "Não é minha função. Ela tinha de ter sido recebida num ambulatório, com todo tempo e atenção." Mas o dia sem fim reservava mais uma surpresinha: o término daquele plantão seria antecipado. Depois de 22 horas de trabalho em Guarulhos, Camilo foi chamado para socorrer uma paciente num hospital de São Paulo. Somente depois disso iria para casa, tomaria banho e... começaria mais um dia de consultas em seu consultório particular.

Às 19h30 da véspera, Smith-Howard, já pronto para encarar uma cesárea e um parto normal, recebeu um recado da enfermeira. O número de partos daquele plantão iria dobrar. Ele não se impressionou.

JORNADA SEM FIM

Além dos imprevistos que não acabam, dos almoços de 20 minutos e nenhum pingo de café na longa jornada, os dois médicos têm em comum um dia seguinte tão ocupado quanto seus plantões. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde os profissionais são obrigados a descansar por pelo menos 12 horas depois de um plantão, Smith-Howard e Camilo mantêm a mesma rotina de atendimentos, partos e cirurgias em seus consultórios após as 24 horas de labuta.

Se querem diminuir o ritmo? Outra coincidência: não. "Tenho um salário fixo e fica muito mais fácil (trabalhar direto) para organizar minha semana", diz Smith-Howard. "Imagina se eu tivesse de deixar meu consultório duas vezes por semana!", arremata Camilo. Cada plantão rende a eles, em média, R$ 500.

Mas nem sempre é tão fácil trabalhar tanto. O cirurgião A.L.V. lembra o que ocorreu depois de 19 horas seguidas de um plantão feito há alguns anos, num grande hospital da capital. "Fui chamado às pressas no meio da noite para operar um derrame. Não estava em condições para fazer aquilo, mas não contei para meu colega que acompanhava a cirurgia. Tudo deu certo, mas hoje sei que a paciente correu risco em minhas mãos", admite.