Título: O estilo Chávez de governar
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Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Internacional, p. A20

En quanto estava em Nova York em setembro para discursar na Assembléia-Geral da ONU, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fez uma excursão ao bairro de South Bronx. Sua propensão à publicidade o levou a falar alegremente em usar os crescentes recursos da Petróleos de Venezuela (PDVSA), a estatal petrolífera, para limpar o Rio Bronx. Mas essa peste antiianque que persegue o presidente George W. Bush deixou de dizer a seus anfitriões entusiasmados que era fã dos Yankees, o time de beisebol nova-iorquino. Chávez, outrora um talentoso lançador canhoto, já sonhou com uma carreira nas grandes ligas, jogando naquela catedral do Bronx, o Estádio Yankee. Enquanto ele falava em limpar o Rio Bronx, as ruas de Caracas entupiam-se de lixo não coletado. Depois do furacão Katrina, Chávez vendeu óleo combustível das refinarias Citgo, da PDVSA, nos EUA com desconto para moradores de baixa renda do Bronx e de Boston. Mas esses gestos de generosidade dirigidos aos estrangeiros provocaram, entre os venezuelanos, ressentimento com a negligência do presidente em relação às instituições públicas e aos problemas de infra-estrutura em casa.

Quando Chávez foi eleito pela primeira vez, em 1998, o petróleo venezuelano era exportado ao preço desvalorizado de US$ 7,20 o barril. Durante 2005, o ano em que Chávez consolidou o controle de todas as instituições públicas, o preço saltou para cerca de US$ 50. Com este enorme fluxo de receita do petróleo, o ex-comandante de pára-quedistas pôde prometer ajudas ainda mais extravagantes a potenciais aliados externos. Mas a oposição à sua "Revolução Bolivariana" está aumentando novamente. O futuro de Chávez pode ser decidido pelo descontentamento crescente com a violência, a desordem e a deterioração das instituições públicas e da infra-estrutura doméstica.

Há também a questão da crescente influência cubana. Deve ter sido doloroso para Chávez quando o venezuelano Oswaldo Guillén, que virou herói nacional como técnico do time de beisebol campeão mundial Chicago White Sox, disse ao jornal El Nacional, durante o desfile da vitória do clube, em outubro: "Todo mundo está dizendo 'Chávez isso', 'Chávez aquilo', que a Venezuela vai virar outra Cuba. Não acho que Chávez será tão ignorante. Porque, assim que tentar algo diferente da democracia, vamos derrubá-lo. Em um minuto."

Chávez ainda joga beisebol com seus colegas do Exército, para as câmeras. No entanto, desde que desistiu do sonho do beisebol profissional e ingressou, aos 17 anos, na Academia Militar da Venezuela, tornando-se mais tarde um conspirador de quartel e então um político, a idéia de estrelato não saiu de sua cabeça. Hoje, aos 51 anos, ele é o astro de seu próprio programa dominical na TV, Alô Presidente, que dura horas e freqüentemente inclui o idoso Fidel Castro como co-anfitrião e ministros e generais do Exército como figurantes. É assim que seu governo é conduzido. Chávez tem substituído metade de seus ministros a cada ano.

Ninguém sabe quanto tempo o show ficará no ar. Insone e viciado em trabalho, Chávez tem explorado sua astúcia e sua sorte para sobreviver a repetidas tentativas de derrubá-lo: uma rebelião militar em abril de 2002, uma longa greve geral, grandes marchas de protesto, uma greve paralisante na PDVSA e um referendo revogatório em agosto de 2004, que o presidente venceu e do qual tirou vantagem imediata. Criou uma lista negra que dificultou ou bloqueou as transações com o governo para os 3,5 milhões de eleitores que firmaram a petição para a consulta popular.

"Todo o poder está nas mãos de Chávez", disse Teodoro Petkoff, editor de jornal e ex-líder guerrilheiro que poderá concorrer com Chávez na eleição presidencial de dezembro. "Ele é desconfiado e não consulta muita gente. Nomeia e demite ministros em seu programa de TV. Não tem tempo para os líderes medíocres do partido que criou, o Movimento Quinta República (MVR). O medo e a adulação cercam 'Eu, o Supremo'. A virtual inexistência de controle institucional de seu poder permite a máxima incompetência no exercício das funções públicas, da corrupção descontrolada à arbitrariedade desmedida na administração pública."

"Eu, Hugo Chávez, não sou marxista nem antimarxista", proclamou ele em sua corrida à presidência, em 1998. "Não sou comunista nem anticomunista." Mas seus contatos com o marxismo começaram cedo, logo depois que deixou a vila natal para estudar num liceu na capital de Barinas. Como estudante do ensino médio, foi influenciado por José Esteban Ruiz Guevara, pai de seus dois melhores amigos e comunista veterano que abriu sua biblioteca para Chávez, ávido leitor da história venezuelana que então absorveu os clássicos marxistas.

Ele começou a conspirar em 1977, aos 23 anos, recém-formado na Academia Militar, quando fez contato com líderes comunistas dissidentes e jovens oficiais rebeldes. Em 1980, conheceu Douglas Bravo, o líder guerrilheiro expulso do Partido Comunista Venezuelano (PCV) em 1962 por desobedecer às ordens de Moscou de suspender a luta armada. Bravo vinha criando desde 1957 uma rede de contatos militares para o PCV, a fim de preparar a derrubada da ditadura de Pérez Jimenez. Nos anos 80, ele ajudou os jovens oficiais a conquistar mais amigos nas Forças Armadas. Só depois de uma década de paciente conspiração os planos do grupo irromperam no fracassado golpe de fevereiro de 1992 contra o presidente Carlos Andrés Pérez (1973-78; 1989-93).

Chávez virou um astro da mídia ao ser preso depois do fracasso da tomada do palácio presidencial em Caracas, embora os rebeldes tivessem obtido o controle das outras bases militares. O governo autorizou Chávez a fazer um apelo gravado e televisionado para que os outros rebeldes se rendessem a fim de evitar mais derramamento de sangue. Em vez disso, ele entrou no ar ao vivo, afirmando: "Compañeros, lamentavelmente, por enquanto, nossos objetivos não foram alcançados na capital.... Mas agora é hora de refletir, virão novas situações e o país tem de tomar o rumo de um destino melhor. ... Agradeço-lhes por sua lealdade e coragem e, perante o país e vocês, assumo a responsabilidade por este movimento militar bolivariano. Muchas gracias."

Chávez foi o único conspirador a fracassar em sua missão, mas virou uma celebridade para a massa de venezuelanos cansados da corrupção e revoltados com o tratamento de choque a eles imposto para eliminar os enormes déficits públicos. Depois que Chávez foi eleito em 1998 como o mais jovem presidente da história da Venezuela, a maioria dos oficiais que se juntara a ele no golpe de 1992 deixou gradualmente o governo. A saída mais ruidosa foi a de Jesús Urdaneta, amigo de Chávez por 20 anos que fora nomeado chefe da inteligência nacional e reclamava persistentemente da corrupção no novo governo. Os principais alvos de suas denúncias eram Luis Miquelena, comunista veterano que foi mentor de Chávez e ministro do Interior, e José Vicente Rangel, então ministro da Defesa e hoje vice-presidente. Rangel, que em décadas passadas combateu a corrupção com veemência, disse-me que "a corrupção continua, apesar das mudanças no governo. A velha corrupção é reproduzida na nova corrupção. A corrupção é nosso pior inimigo, além de Bush".

Por enquanto, o controle de Chávez sobre a Assembléia Nacional permite que ele emende a Constituição a qualquer momento para possibilitar sua reeleição perpétua. Há poucos meses, o controle sobre a máquina eleitoral fazia Chávez parecer o vencedor inevitável da eleição presidencial marcada para dezembro de 2006. Mas os 75% dos eleitores registrados que não votaram nas recentes eleições legislativas, assim como a crescente desordem na Venezuela e o colapso de infra-estruturas vitais, sugerem que a vitória pode não ser tão fácil.

Ao assegurar o poder e tentar espalhar sua influência no exterior, Chávez segue três linhas de ação: 1) garantir apoio militar e canalizá-lo para suas metas geopolíticas; 2) obter discrição presidencial, livre de controles fiscais, no gasto de uma grande fatia das receitas do petróleo; 3) lançar programas sociais, principalmente em saúde e educação, que transfiram pequenos pagamentos mensais para milhões de pobres.

1) Apesar da falta de experiência de combate, Chávez desenvolveu uma estratégia ousada para lidar com aquilo que denunciou como planos dos EUA de invadir a Venezuela e conspiração da CIA para matá-lo. Depois de sua breve remoção do cargo por dois dias em abril de 2002, num golpe bizarro no qual os altos comandantes do Exército resistiram a sua ordem de disparar contra uma grande manifestação na rua, Chávez expurgou sistematicamente das Forças Armadas os oficiais suspeitos de deslealdade. Uma nova Lei das Forças Armadas põe todas as tropas regulares e uma nova reserva civil de 2,6 milhões de voluntários sob comando operacional do presidente diante de três contingências: defesa contra uma invasão dos EUA com táticas de guerrilha "assimétricas", um conflito com a Colômbia e um levante interno.

Chávez criou grupos paramilitares de elite sob seu comando pessoal, independentes das forças regulares de segurança. Fez grandes encomendas a fornecedores de armas estrangeiros para superar a baixa prontidão operacional das Forças Armadas de 82 mil efetivos, que sofrem com escassez de fardas, botas, capacetes, trajes blindados, alimentos, caminhões e munição. Encomendou 100 mil fuzis de assalto e uma frota de helicópteros de transporte e ataque da Rússia, modernos caças do Brasil e barcos de patrulha e aviões de transporte militar da Espanha. Os acordos de armas com a brasileira Embraer e a Espanha podem ser minados pela recusa dos EUA de permitir a transferência à Venezuela de tecnologia americana embutida. A utilidade de todos esses novos equipamentos será testada pelo nível de organização das Forças Armadas. Além disso, os oficiais regulares poderão resistir à distribuição de fuzis russos aos milicianos civis.

2) As políticas fiscais de Chávez têm alguma semelhança com as do presidente Pérez quando este governou na bonança do preço do petróleo nos anos 70. Tanto Chávez quanto seu velho inimigo expandiram os poderes discricionários do presidente, privando o Banco Central e o Ministério das Finanças de sua tradicional autoridade. Em 2005, Chávez obrigou o Banco Central, supostamente independente, a entregar US$ 6 bilhões de suas reservas ao Funden, um novo fundo de desenvolvimento sob seu controle pessoal e para o qual a PDVSA também contribui com bilhões de dólares de suas receitas de exportação, para financiar programas sociais. Além disso, o governo planejou o orçamento de 2006 com base num preço do petróleo de US$ 26 o barril, enquanto o exporta por mais de US$ 50. A diferença cria um caixa dois para Chávez.

"O Banco Central foi politizado e não controla mais a base monetária", disse um ex-funcionário. "Cerca de 250 economistas e técnicos se aposentaram mais cedo ou foram postos na lista negra e demitidos por assinar as petições de 2003 e 2004 por um referendo sobre a remoção de Chávez. Eles foram substituídos por chavistas."

Em 2005, a economia cresceu 9,4% e o consumo, 14%, segundo estatísticas oficiais. Embora a oferta monetária tenha se expandido em 51%, graças à bonança do petróleo, a inflação foi mantida em 14% por controles de preço e câmbio, um grande aumento das importações e vendas agressivas de títulos do governo pelo Banco Central para enxugar a liquidez. A escassez de leite, açúcar, grãos, atum, café e fubá aumentou em resposta aos controles de preço. Grandes aumentos de gastos públicos foram anunciados para 2006, mas a expansão prevista das importações pode ser dificultada pela recente interdição da estrada entre Caracas e La Guaira, seu porto, e o aeroporto internacional de Maiquetia.

Economistas prevêem uma perda de PIB e mais inflação como resultado da desorganização e dos custos extras criados pelo fechamento dessa artéria vital. Outras conseqüências surgem diariamente. A Aeropostal, principal companhia aérea doméstica, cancelou 47% dos vôos. A Cargill, multinacional americana do agronegócio, anunciou o possível fechamento de sua fábrica de massas no litoral, que abastece 40% do mercado nacional, explicando que só poderia enviar 7 das 125 cargas de caminhão diárias que normalmente seguem para Caracas. Enquanto isso, duas grandes companhias de telecomunicações avisaram que as conexões entre seus cabos submarinos e o interior da Venezuela podem correr perigo por causa da condição precária das fibras ópticas que passam ao longo do viaduto avariado na autopista.

Também está ficando mais difícil analisar a evolução da economia venezuelana, especialmente em virtude da politização e da rápida mudança de funcionários em todos os níveis. Especialistas reclamam de adulteração de estatísticas oficiais, especialmente nas anunciadas reduções do desemprego e da pobreza e nos níveis de produção de petróleo. No cálculo do desemprego, por exemplo, pessoas que trabalham só uma hora por semana agora entram como empregados com ganhos, enquanto as estatísticas sobre a força de trabalho deixam de incluir o aumento anual da população em idade de trabalhar.

3) Os ambiciosos e caros programas sociais de Chávez provocam reações contraditórias. O mais popular é o Mercal, a rede de supermercados do governo que vende alimentos básicos a preços subsidiados. O programa mais divulgado é o Barrio Adentro, com 13 mil médicos cubanos vivendo e trabalhando em comunidades pobres. Nas "missões" educacionais, as pessoas recebem um pequeno salário para estudar. A Misión Robinson busca acabar com o analfabetismo, embora só 6% dos venezuelanos fossem analfabetos no início do programa, em 2003. A Misión Rivas concede diplomas de ensino médio com dois anos de estudo, depois dos quais os formados têm o direito de ingressar com bolsas nas novas universidades "bolivarianas". A Misión Milagre enviou milhares de venezuelanos a Cuba para cirurgias de catarata.

O programa Vuelvan Caras diz ter organizado 60 mil cooperativas com o incentivo de empréstimos do governo. O número mínimo de membros das cooperativas foi reduzido de 30 para 5, pois era difícil organizar grupos maiores. "Muitas cooperativas são formadas por membros de famílias que contratam gente de fora ilegalmente, sem benefícios sociais", disse um observador experiente. "Eles são pagos para ser treinados a conduzir essas cooperativas. Recebem capital e maquinaria para iniciar seus negócios. Algumas cooperativas são continuamente resgatadas pelo governo, enquanto outras ainda esperam seus empréstimos."

O governo anunciou ter gasto US$ 2,9 bilhões em 2005 para sustentar esses programas. Segundo uma pesquisa da Datanálisis, 47% dos entrevistados foram beneficiados pelos supermercados do Mercal e 21% usaram clínicas do Barrio Adentro, enquanto só 4,5% participaram das misiones educacionais. Apenas 1,8% ingressaram em projetos do Vuelvan Caras.

Em viagens à Venezuela em 2004 e 2005, revisitei bairros periféricos onde fiz pesquisa de campo nos anos 60 e 70, lugares com nomes exóticos como Manicomio, Gato Negro e Polvorín que surgiram nos anos 40 e 50 e estagnaram nas últimas décadas. A estagnação foi resultado das perdas anuais de renda sofridas pelos venezuelanos desde 1979 e da falta de espaço para expansão no apertado Vale de Caracas, onde muitas comunidades pobres assumem a forma de casbás densamente povoadas, com ruas e vielas estreitas e sinuosas. "As ruas estão entupidas de lixo não coletado, pois o governo municipal deu a concessão a cooperativas do Vuelvan Caras no lugar dos antigos empreiteiros", disse um líder local.

Os participantes são gratos pelos salários mensais que recebem dos programas das misiones, mas há problemas de distribuição. "O processo revolucionário não é ruim", disse Efraim Torres, que mora na pequena casa de tijolos à beira de um barranco onde nasceu há 40 anos e hoje dá alojamento gratuito a um instrutor esportivo cubano. "Há muito favoritismo e corrupção na distribuição de dinheiro e pacotes de comida. Um líder de cooperativa roubou 18 milhões de bolívares (US$ 8 mil). Muitos professores de esportes cubanos estão deixando a Venezuela. Carlos, nosso cubano, ensina basquete, xadrez, dança terapêutica e futebol a nossos filhos. Também está ensinado moradores a conduzir o programa. Carlos diz ter saudade de Cuba. Ele evita a política e não fala muito de socialismo."

A desorganização do governo reflete a desorganização da sociedade. Na fracassada rebelião militar contra Pérez em 1992 e no movimento popular-militar contra ele em 2002, que tirou-lhe do poder por dois dias, Chávez optou por se render quando ficou em desvantagem. Hoje, consolidado no poder com o controle das instituições públicas, incluindo as Forças Armadas, Chávez pode reagir à adversidade de outro modo. Qualquer que seja o desfecho imediato, a Venezuela é uma advertência ao restante da América Latina para as conseqüências da degradação e da falência das instituições públicas.