Título: 'Dinheiro americano manchou Fatah'
Autor: Daniela Kresh
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Internacional, p. A16

Segundo Bassem Eid, diretor do Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos, distribuição de verba dos EUA para o partido comprar votos fez a população se voltar contra governistas

Bassem Eid, diretor-executivo do Grupo Palestino de Monitoramento de Direitos Humanos (GPMDH), está deprimido. Desde que a vitória do grupo radical Hamas ficou clara nas urnas, Eid tenta entender o que aconteceu na sociedade palestina. Para isso, recorre a comparações com as últimas eleições na Irã, que colocaram no poder Mahmud Ahmadinejad, um líder que tem causado polêmica com suas idéias e retóricas inflamadas anti-Israel e impulsionado um programa nuclear nacional.

Natural de Jerusalém Oriental, o conhecido jornalista e ativista de partidos moderados independentes culpa a intervenção americana no processo eleitoral palestino, que afastou o povo do partido governista Fatah e ajudou a eleger os fundamentalistas do Hamas. Para Eid, os americanos serviram como fator de desunião dentro da sociedade palestina, sujando o nome da Fatah ao inundar o partido com verbas para compra de votos.

O sr. acredita que o Hamas vai voltar atrás e reconhecer a existência de Israel?

Não tenho certeza. Vai demorar para eles decidirem qualquer coisa, até porque o Hamas é formado por uma diversidade de visões. Algumas de suas facções podem até mesmo concordar em reconhecer Israel, mas outras vão querer manter intactos seus princípios.

Como o sr. analisa a vitória do Hamas? Por que ele ganhou?

Essa eleição me pareceu muito com a do Irã. Quanto mais os Estados Unidos pressionam os iranianos a parar de financiar o terrorismo e desenvolver armas nucleares, mais o povo se volta para a ala conservadora que rejeita fortemente os americanos. O resultado foi a vitória de Ahmadinejad. No caso da Palestina, quanto mais os Estados Unidos distribuem dinheiro para comprar votos para a Fatah - o que aconteceu descaradamente -, mais o povo vai ficando contra a Fatah. Para a população, esse tipo de negócio sujo lembra a época de Yasser Arafat, que conseguiu acumular milhões. O dinheiro americano pode ter feito eleitores da Fatah se voltarem contra o partido só para manifestar-se contra a intervenção americana no processo. Quer dizer: quem votou no Hamas, votou, na verdade, contra a Fatah. Foi um voto negativo.

Mas os Estados Unidos apoiaram o presidente Mahmud Abbas e financiaram as eleições democráticas...

É preciso entender que, em todo conflito, há divisores e conectores. O papel dos Estados Unidos, neste caso, é definitivamente o de divisor. A intervenção americana primeiramente cria divisões na Palestina, desviando o apoio original do povo a facções moderadas como a Fatah em direção a grupos mais radicais e extremos - neste caso, o Hamas.

Por que apoiar o extremismo é o caminho anti-Estados Unidos?

Apelar para o extremismo é mais facil quando se quer demonstrar rebeldia. Muito mais fácil do que continuar a apoiar os moderados, o que requer mais energia. Provocar é mais fácil do que ser cool, é mais fácil do que demonstrar calma e contenção.

O caráter religioso do Hamas ajudou em seu sucesso?

Sim. Muito. O povão sempre é atraído pela coisa dogmática, pelo apelo emocional da religião, deixando de lado a razão, o racionalismo e a ciência. Se quisermos ver por outro lado, a presença americana se torna um ponto de conexão entre grupos do povo que se unem em prol de caminhos extremados. Novamente: foi o que aconteceu no Irã e é o que está acontecendo agora na Palestina.

Até que ponto, então, essa vitória do Hamas reflete realmente a sociedade palestina?

O Hamas é a criação e o produto da sociedade palestina, em todos os sentidos. Primeiro, porque o governo, a Autoridade Nacional Palestina, não tomou conta de seu próprio povo, nem socialmente nem politicamente. Fora isso, a Fatah, sob a liderança de Yasser Arafat, se deixou levar muito facilmente pelos acordos de Oslo, que foram uma vitória total de Israel, com ganhos próximos do zero para a causa palestina. E, finalmente, o sucessor de Arafat, Mahmud Abbas, não conseguiu lutar contra a imagem de corrupção do partido, o que destruiu qualquer esperanca de renovação dentro da Fatah depois da morte de Arafat.

O quadro socioeconômico nos territórios palestinos, com pobreza e desemprego, também ajudou na vitória do Hamas?

E muito. Novamente, comparo ao caso do Irã. Lá, ONGs religiosas têm atuado como governo paralelo há anos, no sentido de financiar ações de caridade e desenvover redes de assistência social para populações carentes. Essas populações apoiaram Mahmud Ahmadinejad e não o ex-presidente Hashemi Rafsanjani, que era sinônimo de corrupção e de ostentação. O mesmo acontece com o Hamas: ele criou uma rede de assistencialismo que acabou reforçando a idéia de que o poder público é sujo, ineficiente, inepto. O Hamas se tornou um subproduto dessa cultura diante da imagem de corrupção da Fatah e do regime arafatiano.

Pessoalmente, o sr. está decepcionado com a escolha popular?

O papel de um analista é destrinchar as coisas sem entrar em partidarismos. Mas não posso negar: estou na política e exerço política. Não posso escapar da sociedade palestina. Estou deprimido, pensando no que pode acontecer com a minha sociedade, mas tenho de me entregar de braços abertos a ela. Não tenho escolha a não ser aceitar a realidade.