Título: Sem programa, sem dirigentes
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Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Internacional, p. A14,15

Hamas chega ao governo sem infra-estrutura e sem pessoal qualificado para tocar o dia-a-dia da administração

Os homens acorreram maciçamente à mesquita central de Ramallah na sexta-feira. Eles se apinharam no templo para fazer devoções e como não cabiam todos passaram a fazer fila do lado de fora, debaixo dos toldos, para rezar. Dois dias depois de as eleições parlamentares palestinas darem uma vitória decisiva para o movimento militante islâmico Hamas, as pessoas daqui estão aos poucos tentando entender os resultados.

Muitos vieram aqui em busca da orientação do imã da mesquita, empregado da Autoridade Palestina (AP) que continuou firmemente sob o controle da Fatah até a eleição. Agora, ele precisa encontrar um difícil equilíbrio entre as expectativas de seus fiéis, o antigo governo e o próximo, que deve ser chefiado pelo Hamas. Na quarta-feira, a organização militante, mais conhecida no exterior pelos ataques a civis israelenses, conquistou os palestinos com sua promessa de acabar com a corrupção desenfreada na AP governada pela Fatah.

"O dia das eleições foi um bom dia para o povo palestino e a comunidade islâmica ao redor do mundo", disse o imã cautelosamente. Sem fazer nenhuma menção direta ao Hamas, ele disse que sempre é bom quando os devotos aceitam suas responsabilidades. "Temos que pôr nossa casa em ordem", disse o pregador. "Precisamos de paciência e sabedoria. Temos que nos manter unidos - todos, sempre, em todos os lugares."

NOVA REALIDADE

Na sexta-feira, em Ramallah, uma nova realidade começou a se estabelecer. À medida que chegavam para rezar, os homens deixavam centenas de pôsteres na mesquita do fundador do Hamas, o xeque Ahmed Yassin, morto por israelenses em 2004. Mas, na maioria, os membros do Hamas mostravam um comportamento discreto sexta-feira. Eles não estavam preparados para a vitória de quarta-feira e, na sexta-feira, se viram lutando para compensar o tempo perdido.

Os líderes locais do Hamas começaram a se reunir para fazer planos mais grandiosos para um partido que até então não tivera plataformas políticas sólidas além da promessa de combater a corrupção.

Muitos políticos do Hamas tiveram esperança de formar uma coalizão com os derrotados da Fatah, mas essa parceria é impopular em amplos setores do partido fundado por Yasser Arafat. Se o Hamas e a Fatah não conseguirem juntar forças, as consideráveis debilidades do Hamas logo estarão sob a luz dos holofotes.

Falta ao partido islâmico pessoal qualificado para tocar o governo, seja no Parlamento, seja no gabinete do presidente palestino, Mahmud Abbas. Khaled Mashal, o líder intelectual do movimento e principal ideólogo, está exilado em Damasco, na Síria. Fontes do Hamas disseram que o movimento está trabalhando intensamente para tentar convencer a União Européia a pressionar os Estados Unidos e Israel a permitirem que Mashal volte à Faixa de Gaza.

Muito embora o Hamas - uma estranha mistura de aparelho terrorista e movimento social - tenha conseguido organizar uma campanha eleitoral vitoriosa, agora terá tremendas dificuldades para elaborar um programa pragmático para governar. Na realidade, terá que depender de uma rede de comunicações criada por um movimento de resistência subterrâneo.

Mas os problemas do partido não são apenas a falta de uma infra-estrutura partidária em funcionamento. Nos dias que antecederam às eleições, o Exército de Israel prendeu dezenas de quadros importantes do Hamas e os pôs sob detenção administrativa por um período indefinido. Entre eles está o xeque Hasan Yusuf, um importante ideólogo do Hamas na Cisjordânia. A detenção de Yusuf pode até tê-lo ajudado a conquistar votos, mas sua ausência começa a se mostrar dolorosa para o movimento.

Com tantos líderes fora de ação, a questão de quem poderá ser nomeado para o gabinete de Abbas continua aberta. Se conseguir formar um governo de coalizão, acredita-se que o Hamas vá querer os chamados ministérios "do bem", compreendendo-se nessa lista não muito definida ministérios como educação ou bem-estar social, onde poderá rapidamente aplicar sua pauta islâmica sem muita resistência.

Mesmo antes da vitória do Hamas, alguns candidatos independentes com laços com o partido já tinham sido considerados possíveis candidatos a postos importantes no governo. Agora o Hamas pode estar numa posição na qual precise encontrar um primeiro-ministro e um chanceler no próprio partido - políticos que, inicialmente, seriam vistos como párias internacionais por quase todos os governos com exceção do Irã. Entre os nomes que estão sendo ventilados para um posto-chave está o de Ismail Haniye, líder do Hamas em Gaza, que tem servido como porta-voz do grupo desde a eleição. Mas Haniye é uma figura discreta e pouco se sabe sobre a forma como poderia conduzir o partido se assumir o poder.

COFRES VAZIOS

Mesmo que o Hamas consiga formar um governo, terá muitos problemas à frente. Nas próximas duas semanas vencem os salários dos cerca de 150 mil funcionários da AP. Mas como os políticos da Fatah gostam de dizer, os cofres estão vazios. No passado, a comunidade internacional apressava-se a encher o buraco financeiro para assegurar a estabilidade na região. Com o Hamas no comando, é provável que isso não ocorra mais.

Os islâmicos também estão se dando conta de que, se tentarem governar sozinhos, terão que se encarregar do caótico aparelho de serança palestino, dominado pela Fatah. Será que a polícia vai obedecê-los? "Vamos esperar para ver", disse um membro da Polícia Especial enquanto patrulhava de jipe as proximidades da Praça Manara, no centro da cidade.

Nas áreas controladas pelos palestinos não existem funcionários civis comprometidos em servir o governo. Depois da fundação da Autoridade Palestina, eles primeiro juraram aliança a Yasser Arafat e mais tarde à Fatah.

Quando o Hamas tentar assumir o comando desses grupos, poderão surgir problemas rapidamente - uma realidade que mexe com os nervos de vários membros do Hamas. "A vitória poderia ter sido um pouco menos complicada", resmungou um ativista do Hamas, querendo se referir à necessidade de cooperação com a Fatah.

Naturalmente que há, também, eleitores muito satisfeitos com o resultado das eleições. Faris, dono de uma loja de roupas masculinas, disse que apoiou o Hamas porque "sob o comando da Fatah era impossível fazer uma contabilidade normal". Mas aqueles da comunidade empresarial em Ramallah que se opõem ao Hamas já estão se preparando para outro cenário - o rápido fracasso dos islâmicos.

"Noventa por cento de meus negócios vêm de organizações não-governamentais estrangeiras que mandam seu pessoal para Ramallah", disse um empresário de 45 anos, que pediu para não ser identificado com medo das repercussões. "Essas pessoas deixam um monte de dinheiro aqui, além da ajuda direta que recebemos." Ele teme que, se essas entidades acabarem com seus projetos por causa do Hamas, "o país logo quebre". Ele apoiou um pequeno grupo de esquerda nas eleições e está contente com o fato de a vitória do Hamas não ter sido tão maciça que o movimento venha a poder governar sozinho. Afinal de contas, o sucesso eleitoral esmagador do grupo fundamentalist pode também se transformar em seu próprio desastre".

"Seis meses, no máximo um ano, é o tempo que dou", disse ele. "Depois, haverá novas eleições e o horror estará terminado."