Título: O Chile e nós outros
Autor: Sergio Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

São imensos os contrastes entre o Brasil e o nosso bem-sucedido vizinho. Somos um país de quase 200 milhões de habitantes (eles, de 15 milhões). Nossa economia é de seis a oito vezes maior, mais diversificada e complexa (embora não necessariamente mais competitiva). Vivemos num país federativo, descentralizado em termos fiscais e administrativos, com muitas diferenças e desigualdades regionais (eles são, na prática, uma República unitária, em que as regiões não têm peso político e são comparativamente mais homogêneas entre si). Os partidos políticos brasileiros são relativamente jovens, pouco enraizados na sociedade e frágeis na sua coesão interna (os chilenos têm raízes que remontam ao início do século 20, identidade social mais bem delineada e se comportam disciplinadamente).

Esses contrastes bastam para mostrar como é ingênua a crença de que o atraente exemplo do Chile possa ser tomado como modelo a seguir pelo Brasil, onde os avanços econômicos e sociais foram mais modestos desde o retorno à democracia.

Há, porém, muito a aprender com a experiência chilena, mesmo sabendo que ali não se encontrará a chave para todas as nossas necessidades e desafios. O principal aprendizado vem da política: como um país dividido ao meio pelo trágico desfecho do equivocado governo Allende e pela brutal ditadura do general Pinochet (20 anos ao todo) conseguiu construir (nos últimos 16 anos) uma democracia apta a oferecer liberdade, progresso econômico e diminuição acentuada da pobreza?

Havia condições objetivas favoráveis, sem dúvida. Mas foi fundamental que as lideranças da nova democracia chilena tenham sabido, sem perda de tempo, tirar as lições do drama vivido no período anterior e, a partir daí, estabelecido um caminho de mudanças graduais, aceitáveis para o "outro lado", mas inequivocamente voltado para um futuro de crescente democratização, integração competitiva na economia global e fortalecimento das políticas de "inclusão social".

Essa aposta no futuro exigiu uma difícil e dolorosa digestão do passado. Difícil porque requereu rever e abandonar de vez as crenças econômicas que levaram o governo Allende ao desastre e aceitar que não era possível nem desejável retroceder na implantação de uma economia de mercado aberta e competitiva, introduzida com enormes custos sociais pela ditadura. Dolorosa porque implicou a sobrevivência do arranjo político-administrativo arquitetado por Pinochet para assegurar recursos políticos e financeiros extraordinários às Forças Armadas e aos partidos da direita.

Em relação à política econômica, a lição tirada do passado e a clara "mirada hacia el futuro" foram decisivas para viabilizar taxas de crescimento superiores a 5% na média dos 16 anos subseqüentes, permitir a duradoura coalizão entre socialistas e democratas-cristãos e assegurar apoio político-eleitoral aos governos da chamada Concertación, integrada pelo dois partidos antes rivais. Quanto à sobrevida do entulho autoritário, ela foi o preço a pagar para assegurar a estabilidade do regime democrático contra a ameaça de um novo golpe militar apoiado por parte da sociedade.

Em nenhuma das duas áreas, porém, os governos da Concertación permaneceram amarrados à herança do general Pinochet. Os últimos 16 anos têm sido de evolução constante de um modelo econômico ultraliberal para um modelo em que se busca combinar Estado e mercado de modo a ter o melhor equilíbrio possível entre eficiência econômica e bem-estar social. Os dados são eloqüentes a esse respeito (a proporção de pobres, por exemplo, reduziu-se de 40% para 17% da população).

Nem assim o Chile está deitado em berço esplêndido. Ao contrário, está empenhado em responder aos desafios cada vez maiores de tornar a sua economia mais competitiva, com base na inovação, e sua sociedade menos desigual, mirando-se nos exemplos de países que lhe servem de parâmetro, como Finlândia, Irlanda e Nova Zelândia.

Em termos políticos, o entulho autoritário vem sendo progressivamente varrido para a lata de lixo da História e os crimes bárbaros cometidos pela ditadura do general Pinochet, esclarecidos, com a reparação das famílias das vítimas. O ocaso do velho ditador, processado por crimes de corrupção e contra os direitos humanos, coincide com o quarto governo sucessivo da Concertación. Este agora encabeçado por Michelle Bachelet, filha de um oficial da Aeronáutica encarcerado e morto nas prisões da ditadura, onde também estiveram e foram torturadas ela própria e sua mãe.

Em suma, o sucesso do Chile deve muito a ingredientes intangíveis, em especial à capacidade que tiveram as suas lideranças democráticas de tirar as lições do passado sem demora e sem hesitação, desenhar um futuro viável em torno de poucos, mas cruciais objetivos, estabelecer as condições para cumpri-los, perseverar no rumo traçado e, ao mesmo tempo, olhar além da linha do horizonte imediato, para ampliar os limites do possível.

Essa é uma lição que deveríamos saber aproveitar. Claro que o nosso tamanho nos impõe maior lentidão de movimentos, que a nossa trama política é muita mais complexa, que a nossa é uma verdadeira sociedade de massas pobres, ao passo que a deles, para o bem e para o mal, guarda ainda características oligárquicas.

Tudo isso, porém, não nos deve servir de desculpa para deixar de ver o óbvio. É que, meio aturdidos por ecos do passado mais remoto (o velho nacional-estatismo) e ruídos do passado mais recente (a tola polêmica entre estatistas e neoliberais), somos uma baleia andando em círculos ou em ziguezague, se tanto. Corremos o risco, assim, de terminar encalhados num banco de areia, enquanto golfinhos, como o Chile, e outras baleias, China à frente, nos vão tomando a dianteira.

É mais do que hora de decidirmos o que queremos neste vasto oceano do mundo global.