Título: Globalização, ideologia e democracia
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Uma das muitas características desta nova onda globalizadora que marca nossos tempos é a transformação de questões antes adstritas ao campo dos chamados Estados nacionais em "comunalidades", para valer-me de termo cunhado pelo embaixador Roberto Campos. Sem querer explicitar todas, mencionaria a questão dos direitos humanos, encarada hoje fora dos tradicionais limites da soberania de cada país; a preservação do equilíbrio ecológico e as conseqüentes exigências da manipulação dos recursos naturais não-renováveis; o tráfico de entorpecentes e o comércio ilegal de armas, ambos insuscetíveis de ser coibidos, prevenidos ou tratados somente no plano nacional, pressupondo, ao contrário, um esforço incomum e de caráter multilateral.

Ao mesmo tempo, não se deve esquecer assuntos que ainda reclamam uma regulamentação transnacional, tais como os atinentes à internet, cujas negociações pouco evoluíram nos últimos conclaves; e a internacionalização das mídias, especialmente da TV, cujo caráter interativo já está provocando uma grande mudança no território das comunicações.

Até mesmo nas sofisticadas áreas relativas à produção cultural estamos aprendendo a lidar com o fato de que o público não se esgota nos limites de cada território. O cidadão está, na maior parte do mundo, e ao mesmo tempo, cada vez mais habilitado, pela melhora dos padrões educacionais das sociedades, a apreciar os frutos da criação intelectual com a mesma facilidade com que escolhe os melhores produtos aos menores preços.

No plano estritamente político, não podemos relevar fatos que apontam para redução dos conflitos armados, para a disseminação dos regimes de cariz democrático em todo o mundo e para a existência de quase duas centenas de Estados filiados à ONU - portanto comprometidos com seus objetivos, conquanto ainda não integralmente alcançados, de liberdade, de paz e de segurança internacionais. É oportuno constatar, também, que, sob esse ângulo, vivemos sob a tensão de um significativo paradoxo: nunca houve tanta democracia no mundo e, de igual sorte, jamais se contestaram tanto os métodos democráticos de governar.

Se há mais democracia, é natural o crescimento do dissenso e das formas poliárquicas de governar, conforme os ensinamentos de Robert Dahl. O inaceitável residiria na sua inexistência. Tal não ocorre nos regimes autoritários, visto que, pela sua própria definição, constrangem a liberdade, desconhecem o Estado de Direito e os direitos humanos e, ainda, pela necessidade de se autopreservarem, são sistemas imobilistas, que inibem e tornam o progresso mais lento, as conquistas mais difíceis, as transformações mais conflitivas e contribuem para expandir as desigualdades sociais.

Há, todavia, questões que remanescem como problemas específicos dos respectivos Estados nacionais. Refiro-me, no que concerne ao Brasil, à necessidade de enfrentar - se não desejamos ver crescer o número de céticos e desesperançar o nosso povo com relação ao futuro do País - os agudos desafios relativos à governação e que estão voltados para melhorar o desempenho das instituições públicas; aperfeiçoar os mecanismos da representação política; vertebrar verdadeiros partidos políticos; descentralizar, pelo fortalecimento da Federação, os mecanismos decisórios; e, como já preconizara Joaquim Murtinho há quase cem anos, "republicanizar a república" pelo revigoramento dos seus valores.

Esses temas não podem ficar submersos em face de problemas de maior visibilidade, posto que são indubitavelmente da maior transcendência para o País. E é certamente nesse território que estão alojadas as raízes da crise que gera perplexidade nacional e expõe nossas instituições. A propósito, recorde-se, o termo república foi por Cícero (in De Republica) utilizado não como forma de governo, mas antes como reunião de pessoas congregadas pelos interesses comuns da sociedade e sob a égide do direito. Daí Nicola Matteucci (Dicionário da Política) considerar res publica, no sentido ciceroniano, como dar "relevo à coisa pública, à coisa do povo, ao bem comum, à comunidade".

Se tomarmos a questão da política e, mais especificamente, a da eficácia dos seus sistemas, por mais diversos que pareçam ser, verificaremos que eles estão submetidos a um único critério de avaliação em todo o mundo, o da legitimidade. Aludo à legitimidade dos regimes políticos em razão de seu desempenho, e não de sua investidura, esta majoritariamente democrática em todo o mundo - e isso em nada se liga ao debate voltado para questões ideológicas, como o chamado "fim da ideologia" proclamado por Daniel Bell nos anos 60 do século vencido, ou ao "fim da História" decretado por Francis Fukuyama em seu contestado texto divulgado no início da década de 1990.

Em todas as latitudes ou longitudes do planeta, o cidadão agora já não se manifesta somente em função de tendências ideológicas ou programáticas expressas pelos mais distintos partidos. Parece evidente que o debate se descola do plano meramente das idéias dos candidatos e dos programas partidários para indagar igualmente da capacidade dos eleitos de oferecer respostas efetivas às demandas da sociedade, dentro de padrões éticos que também se tornaram universais.

Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, que testemunharam o ocaso do Império e os albores da República, anteciparam na ciência do direito e da política a discussão com que hoje novamente nos defrontamos: a de revigorar o sentido ético do mais relevante ofício da organização social. Virtude, ciência e arte, a política, por se constituir na mais elevada atividade humana, exige que seu desempenho seja compatível, na visão de Joaquim Nabuco, com "sentimento do perigo e da glória, da grandeza ou queda do país".