Título: Salvaguardas: Argentina deu um baile
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2006, Economia & Negócios, p. B1

O governo argentino poderá impor barreiras a produtos brasileiros por decisão unilateral, se concluir que qualquer demora causará "dano dificilmente reparável" à indústria do país. As medidas serão provisórias, segundo o acordo anunciado em Buenos Aires, ontem, pela ministra da Economia, Felisa Miceli, e pelo chanceler Jorge Taiana, durante entrevista na Casa Rosada. O acordo tem 30 artigos e 2 anexos.

Os governos dos dois países começaram a discutir há mais de um ano a proposta argentina de criação de salvaguardas comerciais no Mercosul. As autoridades brasileiras inicialmente resistiram à idéia, mas aceitaram continuar negociando. Mais tarde, passaram a contestar a pretensão argentina de adotar barreiras unilateralmente. Acabaram recuando, afinal, e concederam também essa vantagem ao outro lado.

O texto contém uma porção de regras sobre como as empresas poderão pedir proteção ao governo e sobre os passos da negociação. Na etapa inicial, o governo do país importador avaliará a ocorrência de dano ou de "ameaça de dano importante". Se uma das duas hipóteses for confirmada pelos investigadores, a bola será passada à Comissão de Monitoramento do Comércio Bilateral, criada em 2003. A comissão deverá convocar negociações entre os empresários dos dois países. As partes terão um prazo de 30 dias, prorrogável por mais 30, para tomar pelo menos um dos seguintes caminhos: 1) estabelecer um acordo de integração produtiva; 2) combinar medidas de restrição alfandegária; 3) tomar "outras ações e medidas" para reduzir ou eliminar os efeitos negativos do aumento de importações. Não havendo acordo, o governo do país importador poderá adotar um Mecanismo de Adaptação Competitiva, impondo barreiras.

Mas o governo argentino - porque é disso que se trata, na prática - poderá apressar a imposição de barreiras se concluir, com base no exame preliminar dos dados, que é necessária uma ação urgente. As armadilhas mais importantes do acordo estão nos artigos 19 e 20.

O artigo 19 permite uma ação unilateral com um pouco de boas maneiras. Em caso de urgência, o governo poderá adotar uma barreira provisória depois dos primeiros 30 dias de consultas. Feito isso, poderá prorrogar as negociações por mais um mês. Enquanto isso, as investigações prosseguirão.

O artigo 20 possibilita uma ação ainda mais pronta. Se, no início ou no transcurso da investigação, o governo do país importador concluir que há uma situação de urgência, poderá impor a medida provisória e encaminhar um informe à Comissão de Monitoramento para que abra as consultas entre as partes. Mas, nesse caso, as barreiras já terão sido impostas.

No essencial, o acordo oficializa um tipo de procedimento que vem sendo seguido pelo governo argentino há mais de um ano. Os empresários argentinos denunciavam uma invasão de produtos brasileiros, falavam em danos e, com o apoio de seu governo, chamavam os brasileiros para negociar limitações "voluntárias".

As autoridades brasileiras fingiam que o assunto só envolvia os setores privados de cada país. Discretamente, chegavam a recomendar que os industriais brasileiros cedessem porque esse era o interesse estratégico da administração petista. De fato, os industriais argentinos eram respaldados pela ameaça, quase nunca velada, de imposição oficial de barreiras se não houvesse acordo entre os empresários. Em alguns momentos, o governo argentino chegou a anunciar a adoção de medidas durante as negociações entre empresários.

Esse roteiro foi seguido quando os argentinos quiseram barrar as importações de têxteis, aparelhos eletroeletrônicos, sapatos e outros produtos exportados pelo Brasil. Agora o procedimento está sacramentado por decisão bilateral e o Brasil passa a fazer por obrigação o que fazia por decisão política.

Além de oficializar o protecionismo no interior do Mercosul, o acordo impõe umas poucas limitações ao governo argentino. Os produtos fabricados em zonas francas não serão discriminados. Houve discriminação no caso dos televisores originários de Manaus. O governo argentino terá o dever de adotar um Plano de Adaptação Competitiva para o setor protegido. Até agora, a indústria argentina tem buscado proteção sem se importar muito com investimento e modernização produtiva. Além disso, terá de haver, em caso de limitação de exportações brasileiras, controle das importações provenientes de terceiros países. No caso dos eletrodomésticos, os argentinos compraram de outros países parte do que os brasileiros deixaram de vender. As autoridades diplomáticas brasileiras souberam disso pela imprensa.

Na entrevista coletiva, a ministra Felisa Miceli disse pelo menos três vezes que estava contente. Sem dúvida.