Título: Quem quer curvar o Supremo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/02/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, tem o direito de ignorar a interpelação judicial assinada por 36 personalidades públicas, entre elas o jurista Goffredo da Silva Telles e o arcebispo de Mariana, dom Luciano Mendes de Almeida, para que responda, no prazo de cinco dias, se pretende se candidatar a presidente ou a vice nas eleições deste ano. Os signatários do documento advertem que, em caso de resposta positiva, ele deveria deixar imediatamente o Supremo, "sob pena de vir a ser denunciado por crime de responsabilidade". No entanto, o ex-senador e ministro da Justiça no governo Fernando Henrique não tem o direito de atentar contra o respeito devido à mais alta corte de Justiça com sucessivos atos percebidos pela sociedade - e por muitos dos seus pares no STF - como sintonizados com as conveniências do governo e com suas ambições políticas.

Na crise do mensalão, todas as suas decisões favoreceram os acusados ou suspeitos que recorreram ao STF. Conduziu-se como patrono do então deputado José Dirceu, numa sessão em que as suas atitudes deixaram boquiabertos os que as presenciaram. Impediu a CPI dos Correios de quebrar os sigilos de uma corretora e de um empresário. Fez o mesmo em relação à CPI dos Bingos, no caso do presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, e - duas vezes em 12 dias - no caso do empresário Roberto Kurzweil, dono do automóvel que teria sido usado no transporte dos propalados dólares de Cuba para a campanha presidencial do PT em 2002 e suspeito de ter intermediado uma doação de R$ 1 milhão da tavolagem para o PT. Anteontem, na abertura do ano judiciário, com uma retórica mais apropriada a um palanque eleitoral, Jobim chegou a comparar as críticas que vem recebendo aos pretextos da ditadura militar para cercear os direitos individuais.

Na passagem mais citada do seu comício, disse que o Supremo "nunca se curvou e não vai se curvar a patrulhamentos de nenhum tipo, públicos e privados". Ora, se alguém faz a instituição se curvar a interesses conflitantes com os princípios que devem norteá-la é ele próprio. No episódio de Okamotto, ele alegou que a Corte não quebra sigilos com base em "matéria jornalística". Mesmo se isso fosse verdade - "matéria jornalística" pode ser notícia-crime -, o essencial é que o amigo de longa data do presidente Lula praticamente confirmou as graves suspeitas contra si no depoimento à CPI dos Bingos. Jobim, em suma, fingiu desconhecer os motivos pelos quais a comissão decidiu quebrar os sigilos do antigo sindicalista: ele nem provou que pagara com dinheiro próprio uma dívida de Lula com o PT nem explicou por que esse dinheiro circulou entre contas de Brasília e São Paulo.

Já no segundo episódio envolvendo o empresário Kurzweil, nada obrigava o presidente do STF a julgar o seu recurso. Se quisesse demonstrar à opinião pública que não têm base as acusações de que as suas sentenças estão contaminadas pela aspiração a ser o vice na chapa reeleitoral de Lula, poderia ter esperado o fim do recesso judiciário, daí a dois dias, para que a matéria fosse apreciada por outro ministro, escolhido por sorteio. Agora, pode Jobim dizer quanto queira que a sua preocupação primordial com a "governabilidade política e econômica" não deve ser confundida com "governismo": essa é a percepção dominante que ele mesmo se encarregou de criar, desde a sua nomeação para o Supremo pelo presidente Fernando Henrique, cujo Gabinete integrou.

Jobim tem dito que se aposentará em março, três meses antes do término do seu mandato de presidente do Supremo. Escolheu a data de olho no calendário eleitoral: se entrasse em abril como membro do STF, estaria proibido de se candidatar a qualquer cargo eletivo este ano. É dado como certo que em seguida se filiará ao PMDB, partido pelo qual foi eleito para a Constituinte, embora não participe da prévia marcada para 19 de março, porque isso "pegaria mal" para um ex-presidente do STF, como teria confidenciado a um dirigente peemedebista. Curioso senso de valores tem o ministro Jobim. Para ele, mergulhar de corpo e alma na política depois de se aposentar seria impróprio. Mas transpor os limites entre a política e a magistratura, no exercício desta última, é absolutamente apropriado.