Título: O Brasil entregou o jogo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Está resolvido. A Argentina conquistou o direito de impor barreiras comerciais quando as exportações brasileiras incomodarem seus empresários. Os negociadores argentinos ganharam de goleada de seus colegas de Brasília, mas não há nisso grande mérito. Embora tenha demorado mais de um ano, o jogo foi entregue, alegremente, porque foi essa a orientação diplomática do Palácio do Planalto. Um dos inspiradores dessa orientação, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, número dois do Itamaraty, foi a Buenos Aires para formalizar e festejar os termos da nova rendição da diplomacia brasileira. O Mercosul, disse o embaixador, é fundamental para a política externa e para a economia do Brasil - ainda que à custa da violentação da sua natureza. Empresários com experiência no comércio internacional afirmam exatamente o contrário: com esse acordo, o Mercosul fica ainda mais distante do livre comércio e dos objetivos de uma integração econômica.

À sua maneira, empresários, funcionários e jornalistas argentinos dizem a mesma coisa. Às 12h10 de ontem, hora de Buenos Aires, o jornal Clarín divulgou pela internet uma notícia com o título: "Anunciaron el acuerdo para limitar las exportaciones brasileñas." No mesmo horário o site do La Nación informou: "Acuerdo con Brasil para limitar importaciones." Não havia por que disfarçar. O acordo foi feito para frear a entrada de produtos brasileiros no mercado argentino e isso nunca foi segredo. Em princípio, o Brasil poderá usar o mecanismo contra importações de produtos agrícolas, mas isso não é objetivo brasileiro e só os argentinos insistiram na criação das salvaguardas.

Segundo fontes argentinas mencionadas pelo correspondente do Estado em Buenos Aires, o ambiente era de festa, no Ministério da Economia, pois a conclusão das negociações era considerada uma vitória sobre o Brasil. As expressões de contentamento da ministra Felisa Miceli não deixavam nenhuma dúvida. Ela estava celebrando uma conquista. Nada mais compreensível. Só poderia causar alguma estranheza o entusiasmo dos funcionários brasileiros e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Poderia, mas não causou. Sua alegria é perfeitamente compatível com sua visão peculiar dos interesses diplomáticos do País. Para os estrangeiros, uma concepção cômica de estratégia política e geoeconômica. Os brasileiros, no entanto, não têm motivo para rir. Estão dentro do barco, só têm perdido com essa orientação e continuarão a perder.

Esse acordo é a negação mais ostensiva dos objetivos de uma zona de livre comércio e, mais ainda, de uma união aduaneira. Para adotar salvaguardas contra qualquer outro parceiro comercial, a Argentina tem de seguir as normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Qualquer iniciativa desse tipo é recebida com desagrado, provoca reações severas e pode levar a um processo custoso na OMC. A Argentina pode, no entanto, recorrer facilmente ao protecionismo contra o maior comprador de seus produtos, seu vizinho e parceiro num bloco regional. Tem menos obrigações em relação ao Brasil do que em relação a qualquer país estranho ao Mercosul.

E o presidente Lula - espante-se quem ainda for capaz - julga isso normal, aceitável e positivo para o bloco e para a integração sul-americana. Ele continua sonhando com a liderança continental que não se conquista com gestos de subserviência.

A imposição de barreiras, poderá dizer algum defensor do acordo, dependerá do julgamento de um comitê internacional formado por três peritos. Esse argumento é ridículo. Primeiro, a existência do acordo é uma aberração. Segundo, o texto é redigido para favorecer ações protecionistas. Há até referências a produtos "similares" àqueles barrados pelas medidas de proteção. Os critérios para verificação de danos abrem espaço para todo tipo de esperteza.Terceiro, dois artigos facilitam a adoção de medidas unilaterais - um detalhe teratológico no meio de uma coleção de barbaridades.

Pela Constituição, acordos internacionais são de competência do Executivo e há bons motivos para se manter essa divisão de atribuições. Mas só o Congresso pode dar a palavra final, quando tratados, acordos ou atos internacionais acarretarem "encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional". Não será o caso de alguns congressistas darem uma olhada nesse acordo?