Título: Agitação política infiltra-se no protesto religioso
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/02/2006, Internacional, p. A10

Os desenhistas dinamarqueses que publicaram suas charges de Maomé no jornal Jyllands-Posten devem estar divididos entre dois sentimentos: de um lado, o orgulho de falarem deles; de outro, um pouco de vertigem quando se compara a insignificância do pretexto com a enormidade das conseqüências. A história está familiarizada com essas extravagâncias trágicas. Mas raramente um detonador tão minúsculo terá produzido uma explosão tão estrondosa.

As manifestações que espoucaram de Jacarta a Damasco e até em Paris certamente foram concebidas, organizadas e instrumentalizadas por líderes extremistas ou fundamentalistas. Mas para que as palavras de ordem desses líderes fossem ouvidas com tanta presteza e inflamassem com tanta facilidade as multidões histéricas, era preciso que o ódio das populações estivesse à beira da explosão. Se uma faísca põe fogo numa pradaria é porque o capim está tão seco que quase se incendeia sozinho.

No entanto, à medida que o incêndio se propagou, seus combustíveis se modificaram. No começo, o protesto era religioso. Violou-se uma lei: representar o profeta, o que é proibido, não pelo Alcorão, mas por seus comentadores.

Pior: o profeta foi desenhado como um terrorista, um matador. O pecado do jornal dinamarquês (e, solidariamente, de todo o Ocidente, segundo os muçulmanos) tinha, pois, um nome: a blasfêmia (um pecado capital no Islã enquanto no código francês, por exemplo, a blasfêmia nem mesmo entra no domínio da lei).

Acreditava-se então estar diante de uma questão de intolerância religiosa - a mesma intolerância que outrora nutriu as Cruzadas ou a Inquisição católica e hoje invade, com uma rigor sem precedente, o mundo muçulmano.

Mas ao longo dos dias, as cores do drama mudaram. Suas nuances religiosas, sem desaparecer, se esfumaram, e assomam, por sua vez, no fundo do quadro, cores novas e nitidamente políticas. O regime sírio, que foi o incendiário dos tumultos inqualificáveis de Damasco e Beirute, não costuma ser visto como obcecado por problemas religiosos. Suas intenções são políticas.

Mais significativo ainda é a Palestina. Ali, os agitadores que incitavam as multidões não eram gente do Hamas (a organização religiosa que acaba de vencer as eleições), mas chefes da Fatah, o partido recentemente vencido nas eleições, que sempre se declarou mais político que religioso. No conjunto, as charges dinamarquesas, que eram descritas há oito dias como blasfemas, hoje são designadas como "racistas" e "antiislâmicas." Assim, se num primeiro momento a ira da rua foi religiosa, agora uma outra força pegou o bastão: a política. Nas duas hipóteses, a gravidade da situação é mesma.

A presente crise se desdobra no âmbito de uma situação já explosiva: a tomada de poder pelo Hamas na Palestina , o furor nuclear do Irã xiita, o abominável conflito iraquiano. E uma conseqüência é a seguinte: por toda a Europa, governos tendem a endurecer sua posição sobre o Islã (na França, Dinamarca, Inglaterra, Alemanha). As loucuras dos oito últimos dias são um aviso: o mundo atravessa uma zona de extremo perigo.