Título: Liberalização do câmbio
Autor: RIBAMAR OLIVEIRA
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2006, Economia & negócios, p. B2

O projeto de lei complementar tem apenas 8 artigos, mas vai mudar completamente o mercado de câmbio do Brasil. Ele pretende fazer a primeira regulamentação do polêmico artigo 192 da Constituição, que trata do sistema financeiro, e acabar com o monopólio do Banco Central nas operações de câmbio. Quando ele for aprovado, as pessoas físicas e jurídicas poderão fazer operações de câmbio, entrar e sair livremente com moeda estrangeira e ter conta nos bancos em outras moedas, desde que os recursos tenham origem externa.

Os autores do projeto de liberalização do mercado de câmbio, que certamente causará grande polêmica, são o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e o líder do governo no Congresso, senador Fernando Bezerra (PTB-RN), ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O projeto será apresentado oficialmente na próxima quarta-feira, durante solenidade no Senado que terá a participação de representantes da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), da CNI e de outras entidades empresariais.

Renan e Bezerra utilizaram uma proposta elaborada pela FIESP no mesmo sentido e fizeram alguns aperfeiçoamentos. O fato de Renan ter encampado a idéia é sinal de que, pelo menos no Senado, o projeto andará com rapidez. O fato de Fernando Bezerra também assinar a proposta não significa, no entanto, que ela seja do governo. Mas indica que há simpatia da área econômica pelo projeto, pois, na qualidade de líder do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso, Bezerra não apoiaria uma proposta que contrariasse o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, ou o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

O artigo primeiro do projeto de Renan e Bezerra dá o tom do que se pretende: "são permitidas as operações de câmbio entre residentes e entre residentes e não-residentes". A ressalva é que o Conselho Monetário Nacional (CMN) ficará autorizado a impor restrições ao livre fluxo de divisas e poderá outorgar temporariamente o monopólio das operações de câmbio ao Banco Central, desde que ocorra "grave desequilíbrio do balanço de pagamentos" ou quando essa crise for iminente. Ou seja, o controle do câmbio passa a ser uma exceção e não a regra como é hoje.

As compras e vendas de câmbio serão realizadas exclusivamente por intermédio de instituições previamente autorizadas pelo Banco Central, como é atualmente. Mas as pessoas físicas e jurídicas poderão manter conta corrente em moeda estrangeira nas instituições financeiras, desde que os recursos sejam originários de créditos ou haveres da mesma moeda. O titular da conta, no entanto, não poderá utilizar os recursos para o pagamento de obrigação que deve ser feito em reais.

A movimentação dessas contas poderá ocorrer para aplicações financeiras das disponibilidades no Brasil ou no exterior, para ingresso dos recursos no País ou para liquidação de obrigação em moeda estrangeira no exterior. O Conselho Monetário regulamentará a abertura e a movimentação dessas contas e a utilização desses recursos pelas instituições financeiras.

O CMN regulamentará ainda o registro dos fluxos de entrada ou saída de capital externo ou das mutações patrimoniais de residentes, que de qualquer modo afetem as contas nacionais. O projeto mantém o direito da pessoa física entrar e sair livremente do País com moeda nacional ou estrangeira em espécie, cabendo ao Ministério da Fazenda fixar o valor a partir do qual se fará necessária a declaração por escrito. Quase todos os dispositivos legais existentes no país sobre operações com divisas são revogados pelo projeto, entre eles a famosa lei 4.131, de 1962.

Na justificativa ao projeto, Renan e Bezerra lembram que as freqüentes crises cambiais do Brasil consolidaram a crença de que era imperativo centralizar no Banco Central a entrada de recursos em moeda estrangeira. Como o setor público convivia permanentemente com déficits fiscais crônicos, observam, o equilíbrio macroeconômico era obtido com o monopólio do Banco Central sobre o câmbio, que era fixado a preço inferior ao que seria estabelecido livremente pelo mercado.

Com a adoção do câmbio flutuante e com a obtenção de sucessivos superávits primários, a manutenção do monopólio do BC perdeu racionalidade, dizem os senadores. Para eles, a manutenção da chamada "cobertura cambial" e da vedação da "compensação cambial" é um anacronismo, tendo em vista a atual estrutura financeira mundial e as condições alcançadas pela economia brasileira. Esse "anacronismo", lembram, não é indolor.

Atualmente, um exportador é obrigado a converter suas receitas em moeda estrangeira em reais. Se ele, com esses recursos obtidos das exportações, precisar pagar um débito em moeda estrangeira, terá que fazer nova conversão, desta vez de reais para a moeda com que quitará o passivo. Ou seja, em vez de fazer um simples cancelamento de débitos e créditos em moedas estrangeiras, o empresário precisa fazer duas operações de câmbio e arcar com os custos de transação de cada uma dessas etapas. Estima-se que os exportadores chegam a perder, com esse processo, até 4% de suas receitas cambiais. Os autores do projeto alegam que esses prejuízos são transferidos para toda a sociedade, uma vez que a taxa de câmbio é superior à que seria obtida caso essas despesas não existissem.

Bezerra disse a este colunista que seu objetivo é "abrir o debate" sobre esta questão. Ele observou que o Banco Central é favorável à proposta, mas acredita que esse assunto deve ser tratado com cautela. O receio do BC é que a liberalização do câmbio, se não for feita com os devidos cuidados, possa levar à dolarização da economia brasileira, nos moldes do que ocorreu na Argentina.

Os autores do projeto consideram que tomaram os devidos cuidados para que a mudança não leve à dolarização da economia, tão temida pelo BC. Além de restringir a abertura de contas em moeda estrangeira, eles atribuíram ao Conselho Monetário toda a regulamentação do novo sistema. "O debate vai aperfeiçoar o projeto", disse Bezerra.

O obstáculo maior ao projeto deve ser colocado pela Secretaria da Receita Federal (SRF), pois a mudança provocará perda de arrecadação. A tendência da SRF será identificar essa perda como renúncia fiscal. Mas os empresários envolvidos na elaboração do projeto observaram que a mudança provocará uma melhoria do comércio exterior, com aumento dos negócios e, conseqüentemente, da arrecadação tributária.