Título: De urucubacas e tangolomangos
Autor: Marco Antônio Rocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2006, Economia & Negócios, p. B2

Parece que é meio recorrente, no espírito do nosso presidente, a idéia de que botaram urucubaca no seu governo. Novamente, na semana passada, dizia ele que "os dados do IBGE que começam a sair aqui e ali vão acabar com a urucubaca que colocaram no governo". Em outubro ele já havia dito (e a gente até comentou aqui): "Vocês não sabem o que é urucubaca", referindo-se ao que pensa ser o poderoso mau-olhado das oposições.

É difícil que mentes tão iluminadas emitam pensamentos perfeitamente claros e inteligíveis - lembremos o caso dos oráculos gregos -, mas tentemos decifrar essa obsessão presidencial começando pelo conceito de urucubaca, que no entender, creio eu, da maioria dos brasileiros, indica "má sorte ou infelicidade constante em acontecimentos fortuitos ou em tudo que se intenta (v. Aurélio)". Essa má sorte ou infelicidade constante não é uma coisa que se pespega e se despega assim, à vontade, no lombo do País, no governo, nos negócios, nas famílias, nas pessoas. E, certamente, não emana, nem é desativada, pelos dados do IBGE, mas sim por artes de benzedeiras experientes, rezas fortes, mezinhas bem preparadas e ingeridas, búzios bem jogados, pais e mães-de-santo, novenas para os próprios. E um ramo de arruda prudentemente preso à orelha é sempre o antídoto mais recomendado.

Reza ainda a mitologia tupi que o principal provedor de urucubacas é o caipora, ente endiabrado, morador do mato, parente branco do saci-pererê, este muito reverenciado, como se sabe, pelo deputado Aldo Rebelo. (Cá entre nós, há quem defenda que não se deve dizer "o" caipora, pois a figura seria na verdade uma mulher que andaria num pé só e aos saltos.)

De qualquer forma, a menos que o IBGE esteja agora jogando "dados" iguais aos das cartomantes e tão bons quanto, não é da vetusta instituição que virá a exorcização da urucubaca.

Lula não deveria nunca se queixar de urucubaca; é perigoso, corre o risco de atraí-la como castigo, pois sempre teve extraordinária dose de sorte. Pela situação e condições em que cresceu, pobre, de mãe humilde, que era até analfabeta ao nascer (como ele contou emocionado ao Brasil), poderia não ter chegado a grandes alturas na sociedade... mas é presidente da República! Puxa, se isso não é sorte, o que é então? Sem falar que escapou vivo do tempo em que parecia subversivo aos olhos dos militares, embora estes já estivessem mais mansos.

Quanto ao seu governo, a urucubaca pode estar em vários lugares e posições, menos na economia. Aliás, logo depois que ele tomou posse a economia se livrou da urucubaca que a perseguia. Urucubaca - diga-se - que ele próprio gerou ao se apresentar durante anos como inimigo do capitalismo e ao proclamar, durante a campanha, que iria "mudar tudo o que está aí". Mas os odiados capitalistas logo perceberam que entre a oratória e os atos de governo havia um outro discurso - esse sim, para inglês ver de fato - do qual Palocci ficou encarregado - e se tranqüilizaram.

A urucubaca cedeu e a economia passou a ter tanta sorte quanto a do presidente. As exportações cresceram; as contas correntes melhoraram; o risco País caiu; a inflação, depois de um pequeno ameaço, voltou à cangalha do Banco Central (BC) e dos juros; a relação dívida/produto interno bruto melhorou e agora até o emprego e a renda começaram a crescer, não tanto quanto ele prometera, mas mais do que antes, sem falar que os juros estão baixando. Ou seja, no que se refere à economia, ninguém jogou urucubaca nenhuma no governo. Os adversários talvez até torcessem para que houvesse um pouco mais de urucubaca nessa área, pois estão tendo dificuldade de compor um programa de oposição comparando os dados do IBGE de antes e de agora, uma vez que os de agora são visivelmente melhores que os de antes.

O que sobra para uso eleitoral da oposição fora da economia - e foi mencionado ainda há pouco por FHC quando disse que "a corrupção chegou lá em cima" - é o legado deste ano das CPIs dos Bingos, dos Correios, do Mensalão, enfim, do grand guignol que Lula e PT arranjaram para si próprios no deslumbramento do e pelo poder. Um baile de máscaras marcando como que o fim do PT - numa evocação daquele histórico, da Ilha Fiscal do Rio, que marcou o fim do Império - e em que os corruptos, falsários, mentirosos, basbaques, ladrões e bobos da corte se acotovelaram sem se distinguirem uns dos outros, praticando toda sorte de patifarias sob a batuta e o comando do Grande Bruxo da Casa Civil, afinal cozinhado na tina fervente das suas próprias feitiçarias.

Essa é que foi a grande fonte de urucubaca colocada no governo de que se queixa o presidente. Mas "quem colocaram???" (perdão pelo solecismo, mas é praxe na oratória dos atuais reis do Brasil). Lula já repetiu várias vezes, mas nunca diz quem a colocou. O primeiro culpado está na cara: foi o companheiro de estrada, o amigão Roberto Jefferson, que logo trouxe pela mão, para apresentar aos seus pares e à sociedade em geral, uma fila de caiporas façanhudos do PT, cada um com seu saco de urucubaca para colocar no governo, entregue pelo "muy" fiel corretor de fundos estranhos Marcos Valério. Todos amigões e companheiros, a começar daquele que levava a sua porção de urucubaca escondida na cueca em notas de US$ 100.

Além dessa megaurucubaca espalhada pelo ventilador das CPIs, tivemos outra, menos visível, também gerada intramuros: a da inépcia. Digamos que essa foi um tangolomango, que é uma espécie de urucubaca menos espalhafatosa, porém mais soez. Provoca enguiço em quase tudo que se intenta. Enguiçou a administração na maioria dos ministérios e a conseqüência, só para dar um exemplo mais notável e recente, foi a necessidade de montar às pressas e tardiamente uma operação tapa-buraco nas estradas para mostrar algum serviço.

As oposições bem que tentaram contribuir com alguma urucubaca para atazanar o governo. Criticavam os juros, o câmbio, o Fome Zero, o Bolsa-Família, as viagens de Lula, o Airbus, a política de comércio exterior, o Meirelles, o BC, o Rachid, a falta de segurança. Mas a força dos fatos positivos na economia parece ter sido maior.

E, como muita gente sabe, acusações de corrupção, de má gestão e de compadrio muito raramente impediram algum político de se eleger neste país - infelizmente. De modo que, se Lula não trouxer de volta para a economia, na afobação de ser reeleito, aquela urucubaca de que antes da posse era supostamente o portador, vão se fortalecendo cada vez mais as chances de que se esmaeça a que foi criada nas CPIs pelos bons companheiros - e só por eles.