Título: A artéria entupida da Venezuela
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2006, Internacional, p. A10

Interdição de ponte na principal rodovia do país desacelera a economia e ressalta falhas do governo Chávez

São quatro horas da tarde e o caminhoneiro José Gudinõ já não sabe o que fazer para passar o tempo. O cenário ao seu redor, no início da rodovia Caracas-La Guaira, parece de guerra. Soldados do exército, armados de metralhadoras, vigiam os dois lados da pista. De longe avista-se uma gigantesca fila de caminhões carregados de mercadorias. Todos parados. Alguns caminhoneiros cochilam em redes penduradas sob as carrocerias; outros mantêm o olhar vigilante, com medo de roubos. Circulam entre eles histórias de ataques cometidos por bandidos que se ocultam nas favelas penduradas nos morros ao redor da estrada.

Gudinõ, que se anima com o repórter brasileiro e até começa a fazer perguntas sobre Ronaldinho Gaúcho, como se visse na conversa mais uma forma de passar o tempo, conta que entrou na fila às 6 horas da manhã. Leva uma carga de pneus, com a missão de entregá-los na região litorânea de La Guaira. Quando? O mais rápido que puder, responde, pois ficou impossível estabelecer horários por aqui. Se tudo correr bem, amanhã às 10 horas da noite, os soldados irão liberar a fila e ele poderá guiar até o litoral. Serão no total 40 horas de espera.

É uma quantidade de horas impressionante para qualquer encalhe em qualquer lugar. Mas ela fica mais impressionante aqui. Afinal, estamos diante de uma das principais rodovias da Venezuela, que liga a capital de 4,5 milhões de habitantes ao litoral e às principais portas de entrada e saída do país - o porto de La Guaira e o Aeroporto Internacional Simón Bolívar. Estima-se que 50% das importações da Venezuela, país que importa quase tudo, passem por ali.

INFERNO

Desde o dia 5 de janeiro, quando a rodovia foi interditada, por causa do colapso de uma de suas três pontes, o Viaduto 1, descer ou subir do litoral virou um inferno. Todo o tráfego foi desviado para uma estradinha antiga, estreita e perigosamente sinuosa, na qual se pode consumir 3 horas de viagem - em vez dos 40 minutos que antes se gastava de automóvel.

Os caminhões só podem trafegar entre as 10 da noite e as seis da manhã, alternando subidas e descidas. Um dia para quem deseja subir; e outro, para descer. Só para ter uma idéia, porque as proporções são muito diferentes, imagine o leitor se a Via Anchieta ruísse e o tráfego para o Porto de Santos fosse desviado para a Estrada Velha de Santos.

Ainda há dúvidas sobre o tamanho do impacto causado pela interdição da rodovia Caracas-La Guaira, mas é unânime entre os analistas econômicos que ela já impôs uma redução tão forte no ritmo da economia que fará o PIB encolher. As estimativas variam de 1% a 3%.

Além de frear a economia, a interdição expôs cruamente as dificuldades do governo de Hugo Chávez para manter funcionando os serviços de infra-estrutura no país e virou mais um tema explosivo na fogueira dos debates políticos da Venezuela. Há poucos dias, durante uma de suas homilias, o cardeal Rosalio José Castillo Lara, arcebispo de Caracas e personalidade influente no Vaticano, fez uma referência ao problema. Disse, reproduzindo opinião corrente em Caracas, que, enquanto usa os dólares do petróleo para presentear países vizinhos e angariar simpatias para seu discurso socialista, Chávez não consegue resolver questões básicas do país, como a manutenção das estradas, hospitais, escolas e serviços de coleta de lixo.

SEM AÇÃO

Em entrevista ao Estado, o presidente da Sociedade Civil de Engenheiros da Venezuela, Leonardo Matta, disse que o colapso do Viaduto 1 é apenas a ponta de um problema gigantesco para o qual o país não dispõe de nenhum plano de ação. "Por falta manutenção, há um conjunto de 70 pontes e viadutos, em estradas importantes, que estão ameaçados", afirmou. "Desse conjunto 30 já foram interditados. Outros 20 pode ser fechados a qualquer hora."

A intensidade das críticas já é tão forte que na semana passada Chávez reagiu dizendo que a oposição tenta capitalizar o desastre. "O viaduto se transformou no verdadeiro líder da oposição", ironizou. No fundo o presidente dá pouca atenção ao problema. Sua preocupação agora é o contencioso com o governo americano, com Mr. Danger, como se refere a George W. Bush. Ontem, no programa Alô Presidente, transmitido aos domingos pela TV estatal, disse que é necessário armar um milhão de homens e mulheres venezuelanos, numa referência à "guerra permanente" que os Estados Unidos estariam movendo contra o país.

É óbvio que os problemas não começaram com Chávez, que chegou ao poder há 7 anos. O Viaduto 1 foi inaugurado em 1954 e já nos anos 80 foi constatado que iria se deteriorar num ritmo mais rápido que o previsto, devido a movimentos no solo da montanha onde se escora. A solução era substituí-lo por um novo ou reforçar suas estruturas metálicas.

Nos anos 90 foram feitos estudos para resolver o problema, mas nada saiu do papel e, enquanto um governo responsabilizava o outro, a situação se agravou. Em maio de 2005, técnicos alertaram que faltavam 2 centímetros para se atingir o nível de tolerância máxima de deformação estrutural da obra, de 60 centímetros.

Quando Chávez reagiu já era tarde: em janeiro estouraram rachaduras na ponte e no terreno ao redor, ao mesmo tempo que uma parte dela afundava, criando um desnível de quase 30 centímetros. Na opinião do engenheiro Matta, o governo não sabe administrar problemas dessa natureza e a situação geral do país está se agravando: "Houve uma inflexão quando o governo descentralizou o orçamento e o controle das obras de manutenção. Hoje há várias instituições encarregadas da mesma tarefa. Como não se entendem entre elas, na prática a manutenção foi abandonada."

O economista Victor Puelo, professor de pós-graduação na Universidade Central da Venezuela e ex-vice-ministro de Energia (1999-2000), tem opinião semelhante. Ele disse ao Estado que a alta dos preços de petróleo criou uma euforia no governo Chávez, que acredita estar reinventando o país com seu governo auto-proclamado de esquerda. "A manutenção da infra-estrutura do país foi substituída pela propaganda, pelos gritos de guerra contra o império americano. Tudo se faz de maneira improvisada, o que já afeta vários setores da economia. A improvisação e falta de planejamento são intencionais, porque favorecem a corrupção em determinadas hierarquias do governo."