Título: O jogo da TV digital
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2006, Notas e Informações, p. A3

A decisão da Câmara dos Deputados de entrar no debate sobre a escolha do sistema de televisão digital a ser adotado no Brasil teria sido muito mais útil se tomada há bem mais tempo. Anunciada na semana passada, ela chega tarde e pode retardar o processo. O governo, que previa para o dia 10 de fevereiro a definição sobre o assunto, garante que a decisão será tomada até o dia 15 deste mês. Mas a entrada da Câmara no debate pode aprofundar divergências dentro do governo.

Trata-se de um negócio bilionário. A troca do sistema analógico pelo digital deverá movimentar R$ 100 bilhões em quatro anos. Esse valor inclui a venda de conversores, necessários para permitir que os aparelhos atuais recebam a transmissão digital, novos televisores, aparelhos de telefone celular e receitas publicitárias e de assinantes. Conforme a escolha que fizer, o Brasil pode tornar-se grande exportador de aparelhos de TV digital, e não apenas para países da América do Sul.

Para o público, o caso se resume praticamente à escolha do sistema. Há três deles em uso no mundo: o americano ATSC, o europeu DVB e o japonês ISDB. No início do governo Lula, foi anunciado que o País desenvolveria um sistema próprio, idéia felizmente abandonada, pois continha o risco de isolar o mercado brasileiro e inviabilizar as exportações.

A escolha do sistema é importante, pois dela dependerá a qualidade da imagem e a disponibilidade de serviços, como a mobilidade (a instalação da TV digital em veículos), a portabilidade (a possibilidade de receber o sinal em diferentes pontos) e o número de canais por freqüência. Essa escolha estabelecerá a maneira como se fará a interatividade (se o retorno utilizará a rede telefônica ou a própria banda de freqüência). Outra questão que está em jogo é a da convergência, isto é, o uso de outros meios, como internet e a telefonia celular, para difusão da programação.

Mas a escolha do sistema não é a questão decisiva. O que está em jogo é o novo modelo de negócio da telecomunicação de massa. A convergência propiciada pela televisão digital coloca num mesmo negócio, ou numa mesma atividade, setores que até agora não se enfrentavam diretamente: a televisão, a telefonia celular e a internet.

A produção do conteúdo e sua difusão são as questões que dividem os dois maiores grupos envolvidos no debate, as redes de televisão e as operadoras de telefonia celular. As primeiras, que vivem da receita publicitária, querem manter o domínio sobre a produção e evitar que sua transmissão imponha custo adicional ao usuário. As operadoras, que vivem das tarifas e estão interessadas em novos negócios, vislumbram a possibilidade de transmitir conteúdo, o que implicaria concorrência entre produtores.

Algumas emissoras de televisão - com o apoio discreto do ministro das Comunicações, Hélio Costa, conhecido profissional de televisão - manifestaram preferência pelo modelo japonês. Apontaram razões técnicas para sua escolha, mas a explicação parece relativamente simples. O sistema europeu abre espaço para que uma mesma freqüência seja usada por até quatro canais, e, por isso, tende a estimular a concorrência entre os produtores de conteúdo, o que não ocorre com o japonês. Parte do governo vê o modelo europeu como o mais adequado para programas como de educação a distância e para o estímulo às TVs comunitárias. Além disso, ao contrário do japonês, o sistema europeu permite a interferência das operadoras nas transmissões pelo sistema de telefonia móvel. Ou seja, as operadoras podem cobrar pelo serviço.

A escolha não pode deixar de considerar também as possibilidades de conquista de mercados externos. Dependendo do sistema escolhido, o Brasil poderá tornar-se grande exportador de televisores, mas, segundo alguns analistas, o sistema japonês, por seu uso restrito, inviabilizaria as exportações.

Além de levar em conta a realidade brasileira, constituída por um mercado de baixo poder aquisitivo, um país de dimensões continentais e a importância da televisão aberta para a população, o governo precisa considerar o interesse dos espectadores, aos quais interessa a maior oferta de programas, a um custo menor. E precisa evitar soluções até plenamente justificáveis tecnicamente, mas que podem ser desastrosas do ponto de vista econômico ou social.