Título: No limite da permissividade
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2006, Nacional, p. A6

O presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, é um homem calmo, não se enerva com nada e enfrenta situações adversas sem desperdiçar agitação.

Trata-se de uma característica positiva, notadamente naqueles encarregados de funções públicas e ocupantes de postos sensíveis.

Seria uma vantagem da personalidade do deputado se a sua tranqüilidade espiritual estivesse aliada ao atributo da afirmação de autoridade.

Como não está - ao contrário -, os últimos acontecimentos na Câmara demonstram isso, a qualidade transforma-se em defeito, transitando direto do campo da vantagem para o terreno da desvantagem.

Depois desse período de convocação extraordinária em que os parlamentares não tiveram pejo de simplesmente ignorar seus apelos para que às segundas e sextas-feiras ao menos garantissem quórum para validar as sessões, com a presença de 51 dos 513 deputados, Aldo Rebelo dificilmente retomará - se é que algum dia teve - o sentido de comando na Casa.

O equívoco crucial cometido pelo presidente da Câmara talvez tenha sido justamente suplicar para que 10% do colegiado comparecesse ao trabalho para o qual estão todos convocados extraordinária e nababescamente bem pagos.

Ao que se saiba, não foi revogada sua prerrogativa de cortar vencimentos dos faltosos. Está certo, vão longe aqueles dias em que dois deputados constituintes (Felipe Cheide e Mário Bouchardet) foram cassados por excesso de faltas. Na época, 1989, vivia-se um clima de maior rigor moral e as ausências foram entendidas pelo conjunto da Casa como falta grave, passível da perda do mandato.

Hoje o que se vê é o presidente da Câmara tentando estabelecer acordos de presença ao arrepio da norma explícita e ainda tendo o desprazer de vê-los descumpridos sem maiores satisfações.

Se não é quebra de autoridade, é pior, pois a atitude de Aldo robustece as versões segundo as quais as ausências são propositais e visam a atender às conveniências dos cassáveis interessados na postergação de seus processos.

Não sendo crível a hipótese da conivência do presidente da Câmara com esse tipo de coisa, embora tenha ele próprio faltado à sessão de segunda-feira, fica a evidência da falta de controle sobre a Casa.

A serenidade de Aldo Rebelo ganha perfil de indiferença, beirando mesmo ao desrespeito, quando responde às críticas como se nenhuma relação houvesse entre o posto para o qual foi eleito e as cenas de franco escárnio proporcionadas pelo exercício continuado da gazeta militante.

"A democracia permite que você responsabilize quem quiser. Um pode responsabilizar o presidente da Câmara, outro o papa. É um direito democrático."

Faltou mandar a opinião pública reclamar com o bispo, bem como faltou atenção ao fato de que é direito democrático da população exigir, e dever - imposto pelas mesmas regras democráticas - do parlamentar o cumprimento do mandato representativo em sua plenitude.

Se não cabe ao presidente da Câmara a responsabilidade de zelar pelo perfeito funcionamento da Casa (aí incluída a garantia da realização de sessões para contagem de prazo para tramitação dos processos de cassações, um dos motivos para a convocação extraordinária), a quem caberá, ao papa, como ele sugere?

Francamente, Sua Santidade tem mais o que fazer.

Retrovisor

Quando Fernando Henrique Cardoso toma conta da cena política, bate forte em Lula, faz o jogo de seu partido, ocupando o espaço que poderia estar sendo dominado pela disputa interna no PSDB pela indicação da candidatura presidencial.

De um lado desvia a atenção da briga tucana, mas, de outro, dá ao governo a chance de começar a desenhar o cenário considerado ideal para o PT, que é o da comparação entre os oito anos da gestão FH e os três de administração Luiz Inácio da Silva.

É o sonho petista tornado realidade: Lula protegido (ele não responde diretamente, deixa aos aliados a função do bate-boca), tucanos sem candidato sentindo-se pressionados pela ofensiva do adversário e o debate correndo solto a respeito do governo passado.

Para reforçar, a todo o momento os petistas referem-se aos índices de popularidade do ex-presidente nas pesquisas, não sendo ele candidato, ignorando os números referentes às intenções de votos dos postulantes reais à disputa com Lula.

Assim, na prática vai se reconfigurando o quadro de 2002, quando o PT nadou de braçada sobre o governo do PSDB e ganhou a eleição.

Como se nada tivesse acontecido de lá para cá, os agora governistas planejam, com esse tipo de contraponto, reinventarem-se no imaginário popular como os oposicionistas de outros tempos.

Neste aspecto, o lance inicial dessa fase de acirramento de uma disputa eleitoral ainda sem candidatos definidos foi ganho pelo PT.