Título: Desconto russo pode custar caro
Autor: Jamil Chade
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2006, Vida&, p. A16

O desconto que o Brasil conseguiu obter dos russos para a viagem do primeiro astronauta brasileiro, Marcos Pontes, ao espaço não é um simples gesto de amizade entre nações. Terá de ser compensado. E Moscou já está cobrando.

O Estado apurou que o Kremlin considera o vôo do brasileiro como uma etapa da cooperação entre os dois países e, agora, espera ganhar a concorrência para a construção de um satélite. Além disso, vai iniciar negociações para usar a Base de Alcântara, no Estado do Maranhão, como local de lançamento de satélites comerciais russos. Moscou não permitirá, porém, que os brasileiros tenham acesso aos equipamentos comerciais que serão lançados de seu território.

"O vôo de Pontes deve ser entendido dentro da lógica da cooperação entre os dois países. Os mercados brasileiro e latino-americano são estratégicos para nós", diz Vlacheslav Lisitsin, vice-diretor da Agência Espacial Russa, responsável pelo Departamento Internacional.

50% DE DESCONTO

No dia 30 de março, Pontes será um dos três tripulantes da nave russa Soyuz que irá para a Estação Espacial Internacional (ISS). Os russos, que cobraram dos americanos US$ 21 milhões pela viagem, teriam aceitado um pagamento bem menor do Brasil. Apesar do abatimento ser mantido em sigilo, estima-se que o País esteja desembolsando metade - US$ 10,5 milhões.

O desconto, porém, não foi dado por mera solidariedade a um outro país em desenvolvimento. Os russos têm uma estratégia clara para o Brasil e não escondem que agora esperam uma contrapartida pela cooperação. Moscou enviou há um mês uma proposta para construir o Satélite Geoestacionário Brasileiro. "Temos muita experiência nisso. Esperamos ganhar essa concorrência, pois nosso projeto é estar no mercado brasileiro", explica Lisitsin. A Agência Espacial Brasileira (AEB) informa que uma comissão já foi montada para estudar a oferta russa - mas garante que irá ouvir propostas de outros países.

DE OLHO EM ALCÂNTARA

Outro projeto de Moscou é o de estabelecer com o Brasil um acordo para o uso da Base de Alcântara para o lançamento de satélites comerciais. "Estamos às vésperas da primeira reunião de consultas sobre esse acordo", afirma Lisitsin, que irá ao Brasil ainda neste mês.

Há dois anos, o Congresso brasileiro rejeitou um acordo semelhante com os EUA. A alegação de vários deputados era de que o tratado violava a soberania do País e autorizava os americanos a usar a base sem que os brasileiros tivessem acesso à tecnologia.

Até para os russos, o Brasil "perdeu uma grande oportunidade" ao deixar de assinar o acordo com os americanos. "Nós mesmos temos acordos como esse. Emprestamos nossas bases para o lançamento de satélites de outros países e não temos acesso ao material", avalia Lisitsin. "O Congresso brasileiro não tinha motivos para rejeitar o tratado. Foi algo terrível não ter assinado."

Moscou alerta que também vai querer a inclusão de um artigo no acordo que garanta que só eles terão acesso aos satélites lançados do Brasil. "Isso é normal. Para lançar um satélite, o País não precisa ter acesso à tecnologia. Se o Brasil quiser ganhar dinheiro com o programa espacial, precisa permitir acordos como esse. O Espaço custa caro, mas os países podem ganhar usando contratos comerciais para se financiar", explica Lisitsin.

Tanto interesse por Alcântara se explica pela localização geográfica da base. Os custos para lançar um foguete do Brasil são menores que no Casaquistão - base atualmente em uso pelos russos. A diferença está no combustível necessário para colocar o satélite em órbita, que, no caso de Alcântara, pode ser reduzido. Além disso, as partes que se desprendem do foguete durante a decolagem cairiam no Oceano Atlântico. "O Brasil é privilegiado nesse aspecto e o governo está entendendo isso", diz Lisitsin.

LOBBY RUSSO

Para Lisitsin, é possível lucrar com os satélites comerciais. Países como EUA, França, Índia e China já fazem isso. Só a Agência Espacial Russa lançou 36 satélites no ano passado, dos quais 16 foram de outros países. "Por isso queremos ampliar essas atividades e também lançar a partir de Alcântara. Esperamos que o Congresso brasileiro agora entenda, para que as negociações não sejam travadas", pede o russo, dispondo-se a conversar com deputados e senadores brasileiros sobre o assunto.

Segundo Moscou, a base brasileira precisa de investimentos de US$ 300 milhões para se tornar um centro de lançamentos - ou, como preferem dizer os russos, um Cosmódromo. "Sabemos que é muito dinheiro, mas estamos avaliando se parte desses gastos pode ser feita por meio de investimentos russos", diz o vice-diretor.