Título: Regra não muda, garante OMC
Autor: Jamil Chade
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/02/2006, Economia & Negócios, p. B7

Proposta de Lula de acabar com as decisões por consenso é recebida sem entusiasmo

A Organização Mundial do Comércio (OMC) não vai modificar suas regras de votação durante as negociações da Rodada Doha, que estão programadas para serem concluídas neste ano. Domingo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, ao fim da Cúpula da Governança Progressista, na África do Sul, que a OMC deveria modificar suas regras para evitar que um país ou grupo pequeno de governos tivessem o poder de bloquear uma negociação.

Hoje, as decisões da OMC são tomadas por consenso e, segundo Lula, isso estaria prejudicando o processo de liberalização agrícola diante da recusa européia em fazer concessões. O presidente apresentou sua idéia ao primeiro-ministro britânico, Tony Blair, mas não obteve apoio.

As declarações de Lula também não foram recebidas com entusiasmo em Genebra. O porta-voz da OMC, Keith Rockwell, afirmou que a idéia de votação é interessante, mas que no momento "a prioridade número um, dois e três" do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, é concluir as negociações, e não reformar a organização.

O que surpreendeu os assessores da OMC e o próprio Lamy é que Lula esteve com o diretor no fim de semana e não tocou no assunto de uma mudança na forma de tomada de decisão.

Na OMC, todas as decisões são tomadas por consenso. O problema é que, nos últimos anos, o número de países que formam parte da entidade cresceu. Hoje, são 149 membros, dificultando a formação de um consenso.

Isso não quer dizer que votações não estejam previstas. Pelas regras, elas podem ocorrer, mas nenhum país se arrisca a pedir para que um tema vá para votação porque sabe que, nos assuntos que não são de seu interesse, também não gostaria de ter de passar por uma votação. "Uma votação seria uma bomba atômica", afirmou um assessor próximo à Lamy.

No ano passado, um grupo de especialista foi convocado pela OMC para pensar o futuro da organização. Entre eles o ex-chanceler Celso Lafer. Segundo o documento da comissão, uma reforma deveria ser avaliada, até com o abandono, pelo menos parcial, da regra do consenso.

Mas embaixadores lembram que, para a atual rodada de negociações, uma mudança seria impossível. Entre os diplomatas, as declarações de Lula criaram surpresa e muitos a trataram com ironia.

Até mesmo os negociadores brasileiros mais envolvidos no processo evitaram comentar a proposta e muitos reconheciam que não tinham idéia do que Lula queria dizer com a proposta. Segundo o embaixador do Brasil na OMC, Clodoaldo Hugueney, o Brasil sempre defendeu a regra do consenso.

Já a União Européia deixou claro, por meio de um assessor em Bruxelas, de que dificilmente aceitaria uma mudança no sistema de votação nesta rodada. Para ela, a credibilidade da OMC existe exatamente porque todas as decisões são tomadas depois que todos estão de acordo com o que foi negociado.

Na avaliação de alguns, uma mudança poderia esvaziar a OMC, pois os países que se sentissem prejudicados ou isolados poderiam optar por simplesmente abandonar a entidade.

Até os países emergentes vêem com certo receio a proposta de Lula. Para o embaixador da Índia na OMC, Ujal Singh Bhatia, uma votação poderia criar uma divisão profunda entre os países. "Acho que não ajudaria e criaria grupos de países que se oporiam uns aos outros", afirmou Bhatia. Segundo ele, os países em desenvolvimento não estariam unidos nas votações, já que cada economia tem um interesse específico.

Para o embaixador da China, Sun Zhenyu, a mudança na regra dificilmente ocorrerá. "Precisaríamos de um consenso entre todos para optar por votações."

Já o embaixador de Cingapura defende que, se a votação for instaurada, cada país deveria ter um peso diferente, baseado na participação de cada economia no comércio internacional. Se isso fosse adotado, o Brasil teria só 1% dos votos, contra mais de 30% nos países ricos.

Enquanto Lula falava em acabar com o sistema de consenso, Cuba e Venezuela apresentaram no fim de semana um documento na OMC criticando o fato de que o entendimento da entidade em Hong Kong em dezembro não foi de consenso e que suas vozes não foram ouvidas quando a entidade aprovou sua declaração. Segundo esses países, a aprovação do entendimento foi "forçada e imposta".

Caracas e Havana expressaram reservas ao acordo ao final da conferência de Hong Kong, mas foram os únicos países a discordarem do entendimento sobre produtos industriais e serviços.