Título: 'Não há outra saída além de um bloco regional'
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/02/2006, Economia & Negócios, p. B10

Eduardo Duhalde: ex-presidente da Argentina e do Mercosul Para Duhalde, queixas de empresários de um lado e de outro são normais e a integração é a solução para o continente

Ataques políticos ao Mercosul não passam de retórica, pois a grande verdade é que a economia de mercado foi a única saída que restou aos nossos países, e o processo de integração é o espírito do nosso tempo. Queixas de empresários, de um lado contra outro, são parte normal num processo de integração. O que importa é que a América Latina tem muita água, muita energia, um potencial agrícola gigantesco e já aprendeu muito em seu percurso na direção de uma Comunidade Latino-Americana.

É com visões otimistas desse gênero que o ex-presidente argentino e ex-presidente do Mercosul Eduardo Duhalde está hoje em São Paulo, para uma palestra no Memorial da América Latina, às 16h30. Presidente da Argentina entre 2001 e 2003, quando passou o poder a Néstor Kirchner, o peronista Duhalde é o segundo a falar no ciclo "Presidentes da América Latina - Evolução do Processo Democrático na América", aberto na semana passada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Duhalde falará por 50 minutos - e antecipou pontos centrais de sua exposição nesta entrevista ao Estado - e será sabatinado por convidados como os cientistas políticos José Augusto Guillon e Tullo Viggevano, o embaixador Sérgio do Amaral e a professora da USP Maria Ligia Coelho Prado. O mediador será o reitor da Unesp, Marcos Macari.

O Mercosul tem esbarrado em seguidas dificuldades e há quem diga que ele não tem futuro. O que o sr., que o presidiu até recentemente, diz disso?

O que vejo é que o processo de integração é o espírito destes tempos. O mundo inteiro vive uma tendência de regionalização. Nos marcos desse processo é que se desenvolvem as políticas econômicas no mundo ocidental, que adotou a economia de mercado. Esta se impôs em todo o continente, salvo em Cuba.

A Venezuela, que acena com a Alba, não seria um problema?

A Venezuela é um país que está na economia de mercado. Ela é hoje o país que mais vende para os Estados Unidos. Uma coisa é a retórica, outra são os fatos econômicos.

E o que o sr. diz de tantos obstáculos comerciais que emperram essa integração?

Obstáculos são naturais. A União Européia também os teve, demoraram lá mais de 20, 30 anos. O importante é saber se o mundo, no futuro, vai ter como principais atores as regiões ou os países individualmente. Minha impressão é que o mundo caminha para regiões, que vão formando blocos e acordos. Assim, é indispensável que também formemos um bloco, mesmo com todas as dificuldades pela frente.

A integração não parece prioridade para os governos, no momento.

É preciso esclarecer essa questão. Hoje se debatem temas que às vezes se confundem - o associacionismo e o processo de integração. Veja o exemplo da Alca. O que é a Alca? Não é integração, é comércio, nada mais que comércio. Entre os países que integram o acordo da América do Norte, o Nafta, não há integração - tanto que estão projetando construir uma muralha na fronteira entre Estados Unidos e México. O que pretendemos é integração física, cultural, financeira, energética, de estratégias empresariais. Muito mais que associações comerciais. Ora, o comércio está submetido a conveniências. Portanto, não se trata de dizer "sim à Alca" ou "não à Alca". É "Alca sim" quando nos convém, e não quando não convier.

O Continente tem força para avançar rumo a uma comunidade?

Quando chegarmos a essa integração, o nosso vai ser o maior espaço integrado do planeta. A América do Sul tem 17,3 milhões de km2, será o maior bloco. Temos nele recursos energéticos para 80 ou 100 anos. Temos as três bacias de água doce sem comparação no mundo - o Orenoco, o Amazonas e o Prata. São 27% das reservas de água da Terra. Temos imensas florestas. E ainda o aqüífero guarani, que é um reservatório de água espetacular. Entre Argentina e Brasil já produzimos 47% da soja mundial. Os EUA produzem outros 34%.

O ex-presidente Fernando Henrique disse, na palestra anterior, que a democracia corre riscos, porque os governos hoje não conseguem entender e atender às demandas de seus povos. O sr. concorda?

Na verdade, o risco é permanente. Quando nossas sociedades saíram da ditadura - primeiro foi a Argentina, depois o Brasil, o Uruguai, em seguida o Chile e o Paraguai - também as expectativas populares eram de uma rápida recuperação. E isso não foi possível, por muitas razões. Agora, elegeram-se governos que se denominam progressistas. Ora, esse progressismo, que alguns chamam de socialismo, está dentro do sistema capitalista de mercado. Nenhum saiu desse sistema. O fato é que o socialismo desapareceu. O socialismo caiu com o Muro de Berlim, e o que se vê agora é muito pouca diferença entre um lado e outro. Qual a diferença, na Espanha, entre o antigo governo de José Maria Aznar e o atual, do socialista José Luiz Zapatero, que não seja uma posição na política internacional?

As diferenças entre Brasil e Argentina estão sendo bem conduzidas pelos presidentes Lula e Kirchner?

Se voltarmos um pouco atrás, a história de Brasil e Argentina é a de dois países que não se entendiam. Isso foi um erro histórico. Mas superamos todas as hipóteses de conflito, precisamente depois que os militares foram embora. Para o Exército do Brasil, a Argentina não é um perigo, e o mesmo ocorre para os argentinos. Isso é um progresso extraordinário: já não somos inimigos. Mas em termos práticos, enquanto não houver uma convergência macroeconômica, problemas vão existir. Sempre que um setor argentino ficar pior que o do Brasil, vai reclamar, e vice-versa. Mas isso é assim mesmo, não há como ser de outra maneira. Lembremo-nos da União Européia. Estive na França em 1993, 1994, e vi os agricultores atacando caminhões que entravam da Espanha com frutas. Por isso eu digo: é preciso paciência. A idéia que deve predominar é que devemos nos juntar para vendermos para fora.