Título: Queixa duvidosa
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

O Estado do dia 18 publicou manchete nestes termos: Ruralistas vão contestar reservas (A19). A notícia informava que os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins "decretararam guerra contra o governo federal", que criou recentemente unidades de conservação ambiental. No Pará, a área é de 64 mil quilômetros quadrados. A guerra, vale dizer, não envolve os governadores estaduais. Quem a comanda são as Federações da Agricultura da Região Norte. Alguém definiu com propriedade a Amazônia como "uma floresta urbana". Precisamente a crítica severa decorre, dentre outros motivos, do fato de que a área de conservação estipulada contém várias cidades, ainda que de populações pequenas.

"Queremos gerar riquezas. Estamos fazendo no século 21 o que os bandeirantes fizeram nos séculos 17 e 18", diz na matéria Carlos Fernando Xavier, presidente da Federação da Agricultura do Pará. Ao mesmo tempo, deixam-se envenenar pelo que o presidente Castello Branco chamava de "estratégia do medo", porque o texto do protesto encampa essa surrada suspeita de que são os países desenvolvidos que estão por trás das reservas a fim de preservar para usufruto deles os recursos naturais nelas existentes. É fato que a Amazônia foi praticamente abandonada pelo poder central. Mesmo quando, no começo do século passado, era a segunda fonte de receita das exportações brasileiras, só atrás do café, não mereceu a atenção devida. As 70 mil sementes da Hevea brasiliensis que foram levadas pelo navio inglês Amazon para a Inglaterra não foram contrabandeadas, como ainda há quem sustente ter sido. Ao contrário, foram embarcadas normalmente em Santarém e despachadas pela aduana em Belém como presente à monarquia inglesa. Poucos anos depois começava o declínio da exportação da nossa borracha, incapaz de competir com a heveicultura das "plantations" britânicas. Acabava, assim, o ciclo da borracha.

Só em 1940 o presidente Getúlio Vargas visitou o Estado do Amazonas e fez concessão à retórica: "O Rio Amazonas deixa de ser parte da história da Terra para passar a ser parte da história da civilização." Deve-se a ele, de certo modo, a primeira tentativa de reerguer a economia regional. Criou os Territórios Federais e o Banco da Borracha. JK, em obediência à norma constitucional de 1946, criou a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), com recursos correspondentes a 3% da receita tributária da União. Mas seu plano, submetido ao Congresso, nele dormitou mais de 10 anos sem aprovação. Desde então, vários outros planos para desenvolver a Amazônia não lograram êxito, exceto a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), que alavancou a economia do Estado do Amazonas e a descoberta de abundante minério de ferro, hoje administrado competentemente pela Vale do Rio Doce. A Suframa vem recebendo sucessivas injeções, como a prorrogação por mais 25 anos que lhe concedeu a Constituição, graças ao empenho do relator da Constituinte, o então deputado amazonense Bernardo Cabral. No Pará, a descoberta de Carajás, maior província de jazidas de minérios, especialmente os de ferro, iniciou um novo ciclo: o da mineração.

Mas o engenheiro Lutfala Bitar, em recente exposição feita na Associação Comercial do Pará, alertou para o perigo de "um novo ciclo da borracha", o que, dependendo de nós mesmos, pode não vir a ser um vaticínio. Partiu ele de uma constatação chocante, ao enfatizar que 75% do produto interno bruto (PIB) brasileiro é originário das Regiões Sul e Sudeste, enquanto o Pará, que detém a maior província metalogenética do mundo, que é Carajás, e é o pólo aluminífero mais importante do Brasil, varia entre 1,7% e 2%, apenas, da riqueza nacional.

O destacado empresário paraense alerta para a necessidade de haver sucedâneo ao ciclo mineral, que tem a Vale do Rio Doce, no momento, como autora de investimentos significativos não só na exportação do minério de ferro, mas também na produção da bauxita para a alumina e do cobre no Estado do Pará, de onde extrai milhões de toneladas de minério de ferro, o que garantiu a continuação da fração de produção mundial do minério quando as jazidas do Quadrilátero Ferrífero de Minas se aproximavam de seu forte declínio.

A questão está exatamente no fato salientado por Lutfala Bitar de que Carajás, que pretendia inicialmente chegar a exportar 30 milhões de toneladas, o que garantiria um período de duração de 400 anos, ultrapassou em muito a sua meta, a ponto de triplicá-la ou quadruplicá-la, o que leva as reservas confirmadas a admitir uma extinção dentro de 80 a 100 anos. Nisso é que se baseia o engenheiro para que não voltemos, ao fim do ciclo da extração mineral, a ter o mesmo destino do fim do extrativismo da borracha e voltar a "marcar passo", à espera de uma nova descoberta de impacto.

Os líderes das Federações de Agricultura sabem que a fronteira agrícola paraense cresce à proporção em que a cultura da soja avança - à custa do desmatamento - e que o Pará é dos Estados que mais aparecem nas porcentagens do desflorestamento. Como disse o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, todas as reservas contestadas são terras públicas. Impedir, porém, que sejam corretamente produtivas com a conservação da floresta é desajudar a produzir alimentos para milhões de paraenses. Preservar a floresta é ruim para o povo do interior paraense ter melhor condição de vida. Nisso se resume o conflito das duas concepções. Se se conseguir que o manejo da floresta produza os bens que os ruralistas buscam, sem destruí-la, teremos obtido o ciclo definitivo do desenvolvimento do Pará e vencido as apreensões do engenheiro Lutfala Bitar, que o reclama em prazo que se antecipe à extinção do ciclo mineral em curso.

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador pelo Estado do Pará e ministro de Estado