Título: Lei eleitoral favoreceu radicais
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/02/2006, Internacional, p. A11

A democracia repousa na vontade da maioria. Assim dizem. Mas a verdade é que os sistemas eleitorais quase nunca são planejados só para se ter um governo da maioria. Como os famosos controles do sistema americano, eles também tentam dar uma parcela de poder a um amplo leque de grupos. Às vezes, porém, os formuladores de uma legislação eleitoral podem calcular muito mal, permitindo que uma facção manobre o sistema e conquiste um poder desproporcional a sua quantidade de votos.

É o que parece ter acontecido na vitória do Hamas nos territórios palestinos, segundo uma nova análise feita por um americano que assessorou a Autoridade Palestina (AP) para as eleições. Isso configura um caso que recomenda cautela para outras democracias recentes, como a do Iraque, cujos sistemas estão sendo planejados com a ajuda de especialistas estrangeiros.

As razões por trás da vitória esmagadora do Hamas nas eleições palestinas vão além de uma votação que foi fragmentada pelos numerosos candidatos apoiados pela Fatah, que controlava o governo, como mostra essa análise recente. Ela sugere fortemente que um subterfúgio na própria legislação eleitoral ajudou a converter uma estreita margem no voto popular numa votação esmagadora no grupo.

A análise foi realizada por Jarrett Blanc, especialista em eleições americanas que também trabalhou em eleições no Iraque, Afeganistão, Kosovo e Nepal. A lição é que a maneira como uma nova legislação eleitoral transforma votos em representantes - as letras miúdas de legislações eleitorais - pode ter tanto impacto sobre quem estará governando um país quanto um Exército de ocupação.

Essa observação tem implicações que vão muito além da eleição palestina, particularmente para os EUA e outros países ocidentais que tentam promover novas democracias.

O Iraque oferece outro exemplo. Ali, uma legislação eleitoral muito complexa tentou concentrar a força eleitoral dos curdos que haviam ficado dispersos fora das regiões curdas tradicionais. Mas isso não funcionou. O efeito real foi acrescentar cerca de dez cadeiras ao total conseguido pelos partidos xiitas vitoriosos, disse Blanc.

Entre os palestinos, Blanc atribui a inesperada vitória esmagadora do Hamas, em parte, a um obscuro método eleitoral chamado "votação em bloco", que foi usado em distritos locais para promover candidatos cujo apoio era geograficamente concentrado. Ele foi usado pela primeira vez pelos palestinos em 1996, quando a Fatah era a organização política mais forte e o efeito de distorção da votação em bloco simplesmente excluiu a maioria dos partidos menores.

"Sistemas eleitorais sempre parecem misteriosos até o dia seguinte à eleição", disse Blanc numa entrevista. "É sempre difícil atrair o interesse das pessoas pelos detalhes das regras, mas eles têm um peso enorme." "No caso do Hamas", disse ele, "as conseqüências foram revolucionárias". Os perigos de uma legislação eleitoral são bem conhecidos da pequena comunidade que estuda e monitora eleições mundo afora. Um manual publicado pelo Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral, de Estocolmo, observa que os sistemas escolhidos "podem ter conseqüências não previstas quando foram planejados". E no país envolvido, diz o manual, essas escolhas "podem ter conseqüências desastrosas para suas perspectivas democráticas". O sistema eleitoral que os palestinos escolheram raramente foi usado antes numa escala nacional. Nesta eleição, metade dos 132 membros do Parlamento foi eleita numa votação nacional em chapas partidárias, e metade pelo voto direto em candidatos em 16 distritos.

O número de assentos disponíveis em cada distrito variava conforme a população. Jerusalém teve seis, por exemplo, e Jericó, um. Nos distritos com muitos assentos, um eleitor podia depositar tantos votos quanto os assentos em disputa, no que é chamado de uma votação em bloco.

A votação em bloco "não é um sistema especialmente justo", disse Blanc. "Ele dá uma certa sensação de justiça porque você está escolhendo seus representantes de uma maneira muito direta." A maioria dos comentários sobre a vitória do Hamas enfatizou que isso jogou a favor da força do movimento porque o Hamas era a facção mais disciplinada e oferecia menos candidatos que a antes dominante Fatah, que tinha rivalidades internas e apresentou chapas extensas que dividiram seus eleitores.

Mas a análise de Blanc revelou que a divisão de votos não foi a única maneira pela qual o sistema intensificou o valor da capacidade organizativa do Hamas.

Blanc, que trabalha para uma organização pela democracia internacional conhecida simplesmente como Ifes (sigla em inglês para Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais), ilustrou o que quer dizer descrevendo o que poderia ter acontecido se o sistema tivesse sido usado nas eleições para o Congresso no Estado americano da Geórgia em 2004. Naquelas eleições, com 13 cadeiras em jogo, 1,8 milhão de votos foram dados aos republicanos, que conquistaram sete cadeiras, e 1,1 milhão aos democratas, que ganharam seis. Mas se em vez de 13 disputas por uma cadeira, a eleição tivesse sido decidida por uma votação em bloco para todo o Estado, se cada partido tivesse apresentado chapas de apenas 13 candidatos cada, os republicanos teriam abocanhado todas as 13 cadeiras - supondo que eleitores suficientes tivessem votado na chapa completa.

Ghazi Hamad, um candidato do Hamas que não foi eleito, disse numa entrevista por telefone que seu partido recebeu muito mais cadeiras do que esperava, mas ele atribuiu isto a uma insatisfação do eleitor com a Fatah. Ele não deu uma resposta direta a várias perguntas sobre se o Hamas preparou alguma tática eleitoral para explorar a votação em bloco.

Khalil Shikaki, respeitado perito palestino em sondagens de opinião, disse que tanto a Fatah como o Hamas tinham uma vaga suspeita do que o sistema significaria para suas perspectivas. Mas quando chegou a hora de usá-lo, disse Shikaki, "a Fatah, sem líder, não passou no teste, e o Hamas passou".

*James Glanz escreveu para 'The New York Times'