Título: A Justiça do Mercosul
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2006, Notas e Informações, p. A3

A pesar das dificuldades que tem enfrentado para se consolidar na área comercial, no plano jurídico-institucional o Mercosul vai progredindo, ainda que muito lentamente. Nesse campo, diplomatas e magistrados dos países que compõem o bloco - Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai - vêm trabalhando para tentar harmonizar e uniformizar suas respectivas legislações nacionais.

No final de 2005, os presidentes dos tribunais superiores dos países que compõem o Mercosul, num encontro que também contou com a participação de observadores dos países da Comunidade Andina, decidiram promover encontros regulares a partir de 2006 para trocar informações. Na ocasião, eles decidiram que as reuniões serão realizadas anualmente, ficando sediados em Brasília os responsáveis por sua organização e infra-estrutura.

Nesta semana, reúne-se em Assunção o Tribunal Permanente do Mercosul - criado pelo Protocolo de Olivos, em 2004. Integrada por cinco juízes, a corte planejou esse encontro para estudar fórmulas que permitam aos tribunais do Cone Sul interpretar e aplicar as normas comunitárias da mesma maneira, abrindo caminho para a formação de uma jurisprudência uniforme. Só a preparação do regimento para a reunião no Paraguai consumiu vários meses.

Para se ter uma idéia da importância dessa iniciativa, desde a criação do Mercosul os quatro países membros têm resolvido suas pendências comerciais por critérios mais políticos do que jurídicos. Prova disso é o fato de que, em 18 meses, o Tribunal Permanente do Mercosul julgou só um processo, que obrigou a Argentina a autorizar a entrada, em seu território, de pneus recauchutados do Uruguai.

A grande vantagem da integração jurídica e da constituição de uma jurisprudência uniforme, nas experiências de formação de blocos comerciais regionais, está na despolitização das contendas. Quanto mais técnica é a apreciação e a decisão dos litígios comerciais, maior é a segurança legal de que os agentes econômicos necessitam para balizar seus negócios. Quando há dúvidas com relação à interpretação das regras, riscos de surpresas na sua aplicação e jurisprudências conflitantes entre os tribunais de cada país membro, a tendência dos empresários é postergar seus investimentos, o que prejudica a expansão e a consolidação dos blocos comerciais.

Com uma legislação clara, interpretada da mesma forma por todas as cortes e uma jurisprudência comum a todos os países membros, as pendências não mais dependem de arrastadas e complexas negociações, nas quais os governos muitas vezes têm de fazer determinadas concessões, para proteger interesses e assegurar direitos, disseminando com isso a incerteza jurídica nos meios empresariais. Já com a integração da jurisprudência e a atuação uniforme dos tribunais, há um mínimo de previsibilidade nas sentenças, os processos são julgados mais rapidamente e os juízes podem se concentrar nos aspectos específicos da contenda, sem precisar levar em conta variáveis políticas.

Dada a intrincada gama de interesses conflitantes em jogo, a formação de um direito e uma jurisprudência supranacional costuma ser um processo bastante lento. No âmbito da União Européia, ele demorou quase duas décadas para chegar a bom termo. A estratégia utilizada foi começar pela unificação de leis em torno das quais os países membros não tinham maiores divergências, especialmente em matéria de direito comercial. Só a partir daí é que eles passaram a discutir a progressiva harmonização de textos legais mais complexos e em torno dos quais existiam fortes divergências.

No caso do Tribunal Permanente do Mercosul, a idéia é seguir essa estratégia. Para tanto, a corte decidiu começar pela definição dos tribunais de cada país membro que serão autorizados a dirigir consultas a ela e a pedir orientações para a elaboração de suas sentenças. Essa é uma questão técnica que, dependendo do modo como for resolvida no encontro de Assunção, será decisiva para a formação de um direito comercial uniforme em todo o Cone Sul.