Título: O PT, o sociólogo, a cenoura, o caviar
Autor: José de Souza Martins *
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2006, Aliás, p. J3

Onze anos antes da fundação do partido, Florestan Fernandes já expunha o hibridismo do nosso regime político

Há um poema de Rudyard Kipling, "Nós e eles", que foi inspirado em sociedade corporativa como a nossa. Aqui, ajusta-se aos grupos notoriamente corporativos como as igrejas, alguns partidos políticos de direita e de esquerda e as próprias facções de interesses das universidades. O Partido dos Trabalhadores tem se revelado um dos herdeiros desse corporativismo de várias origens que marca nossa vida política. Traduzido livremente, diz o poeta: "...toda gente boa, como a gente, é Nós e todos os demais são Eles. Mas se você faz a travessia pelo oceano, em vez de fazê-lo pelo caminho, acabará vendo o Nós como mera modalidade do Eles".

O partido do país do Fome Zero, que comemorou 26 anos nesta semana com um banquete que incluía cenoura com caviar, padece os contratempos de uma complicada história de junção de corporativismos que se devoram entre si. O PT se lançou ao grande mar da diversidade social que caracteriza a sociedade brasileira. Mas fechou-se na sufocante Arca de Noé de um sistema conceitual e interpretativo restrito e auto-indulgente. Acabou perdendo o oxigênio dos movimentos sociais e aportando na ilha da fantasia do poder e dos cargos de confiança. A travessia não lhe permitiu descobrir-se e reconhecer-se como parte do Eles, que confinara no inferno da satanização infundada e reacionária. O PT não se vê com a mesma cara do Eles satanizado, embora a tenha: é dialeticamente membro do mesmo ser político que abomina.

Tudo sugere que o PT não lê Florestan Fernandes. É pena. Daí a dificuldade para compreender essas coisas. Na recente quebra do chamado silêncio dos intelectuais, para interpretar o silêncio conivente fomos transportados à Paris cosmopolita, mas nem uma palavra foi dita sobre os intelectuais, petistas ou não, que construíram uma referencial interpretação do Brasil e das contradições que nos regem. Irônica coincidência, na mesma semana do ágape petista, a Editora Globo lança os dois primeiros volumes do oportuno projeto das Obras Reunidas de Florestan Fernandes, coordenado pela Professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, da Universidade de São Paulo. São dois volumes que dão o que pensar. Um - A Revolução Burguesa no Brasil - porque constitui uma das melhores análises dessa característica de nossa sociedade que é o legado de uma história social e política que juntou o escravismo moderno e o estamentalismo da hierarquização social ibérica. Não nos livramos desse fardo. E, digo eu, nem o PT se livrou dessa herança, marcado pelo iníquo corporativismo que afastou ou expulsou de seus quadros militantes da maior grandeza. Foi motivo a simples rebeldia contra a disciplina de quartel e contra o primado do hegemonismo e a tentação do pensamento único.

O outro livro é Pensamento e Ação - O PT e os Rumos do Socialismo. Diverso da consistência duradoura do anterior, reúne artigos e entrevistas marcados, como diz o autor, "pelo tempo jornalístico instantâneo e volátil". Nesse volume, de publicista e ativista político, Florestan empenha-se radicalmente na afirmação de sua interpretação do socialismo e na crítica da "revolução pelo alto", a mudança com conciliação, cujo patrocínio atribuía a Ulysses Guimarães. É um conjunto marcado pelas impressões que Florestan recolheu do socialismo de Estado em Cuba, a partir das quais escreveu um livro sobre a terra de Fidel. Diga-se de passagem, um socialismo já na agonia do patrocínio soviético, que o fizera um regime bloqueado pelas muralhas da guerra fria, um socialismo sem criatividade social e política, um modelo congelado de transformação social.

Tem esse volume a indiscutível importância de um documento sobre o pensamento político de um protagonista erudito que até a morte, em 1995, empenhara-se em fazer com que seu partido se reconhecesse e atuasse como a mediação criativa das tarefas políticas do proletariado. É um documento, sobretudo, relativo aos embates da Assembléia Nacional Constituinte e à preparação da Constituição de 1988, ano de organização do volume agora reeditado.

Florestan via, apreensivo, no andamento do trabalho dos constituintes as ameaças concretas que se opunham a uma Constituição que fosse instrumento de uma sociedade igualitária e reconhecesse a legitimidade dos sujeitos que ocupavam com destaque o cenário dos pleitos sociais mais candentes, no campo e na cidade. Via adversários da Constituição sonhada, mas não via todos, sobretudo aqueles que estavam estrategicamente situados na trama calculada da abertura política. Não via, especialmente, as condicionantes adversas na própria origem e na própria estrutura de seu partido. Era o caso das facções substancialmente conservadoras, como as religiosas, e as desfigurações profundas da sociedade de classes de que eram portadoras. Como era o caso dos vários grupos de esquerda, divididos historicamente por antagonismos profundos. E era especialmente o caso dos que viam no pragmatismo de resultados o destino inevitável do PT. Foi o grupo que se tornou hegemônico e levou Lula ao poder, distanciando partido e líder do pensamento político denso de autores como Florestan Fernandes, se é que algum dia estiveram próximos dele.

O denominado banquete da "volta por cima" foi dominado pela euforia dos resultados de uma pesquisa de opinião eleitoral que apontava Lula 10 pontos adiante de seu potencial adversário. A perda completa da perspectiva crítica, tão cara ao principal autor da chamada sociologia crítica, fez dessa "volta por cima" uma "volta por fora" da realidade adversa: ninguém mencionou outra pesquisa que apontava Serra 8 pontos à frente de Lula no segundo turno. Mas "volta por fora", também, porque Lula e PT fizeram de conta que a espantosa crise política dos últimos meses nada tem a ver com eles. Em A Revolução Burguesa no Brasil, Florestan expõe o hibridismo de nosso regime político e sua imensa capacidade de cooptação do que chama de novos comensais. O livro teve a primeira edição 11 anos antes da fundação do PT.

É pique, é pique no PT SEGUNDA, 13 DE FEVEREIRO Um jantar em Brasília marcou as comemorações dos 26 anos de fundação do Partido dos Trabalhadores. A festa, que contava com cerca de 700 pessoas, reuniu caciques petistas e ressuscitou palavras de ordem como a esquecida "Lula lá".