Título: Justiça com as próprias mãos Uma goleada no Supremo
Autor: Luciana Gross Cunha*
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2006, Aliás, p. J3

Falta traquejo. Mas, ao proibir o nepotismo, o Judiciário começa a cortejar a moralidade interna

QUINTA, 16 DE FEVEREIROPor 9 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF) declara constitucional a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que determina a demissão de parentes de juízes, até terceiro grau, que ocupam

cargos de confiança.Em outubro de 2005 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio de uma resolução, proibiu a prática do nepotismo em todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Em reação, membros do Poder Judiciário acionaram os tribunais para garantir a permanência no cargo dos funcionários que possuem algum grau de parentesco com os integrantes dessas instituições. Na quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional e, portanto, válida a decisão do CNJ derrubando qualquer expectativa sobre a possibilidade de manutenção do nepotismo nas instituições judiciárias.

As discussões sobre a decisão do CNJ traduzem a complexidade do funcionamento e do papel do Poder Judiciário no Brasil, ao lado dos demais poderes do Estado. A idéia de que o Judiciário, ao lado das demais instituições do sistema de Justiça e dos demais órgãos do Estado, é um prestador de serviço público e por isso deve atender às demandas do cidadão de forma eficiente, submetendo-se às regras da administração pública é uma idéia nova entre nós. Como guardião último do ordenamento jurídico e intérprete da lei, cuja função deve ser exercida sob os princípios da neutralidade e imparcialidade, o Judiciário estaria protegido de todo e qualquer controle ou influência e, dessa forma, ocuparia um lugar diferenciado frente aos demais poderes do Estado. Além disso, como a jurisdição é pública e sujeita à revisão por meio de recursos processuais, a instituição não teria algum compromisso com a transparência das demais atividades ou a prestação de contas perante a sociedade.

Sem a necessidade de prestar contas à sociedade e sob a indevida proteção da imparcialidade e neutralidade de suas atividades, o Judiciário, por vezes, abusou no uso de sua autonomia financeira e administrativa. A existência de práticas como o nepotismo e a reação de alguns juízes frente ao funcionamento do CNJ são uma evidência desse abuso que, de alguma forma, também justificaria o espírito corporativista dos integrantes do Judiciário.

A Constituição Federal de 1988 encarregou o Poder Judiciário da responsabilidade pela defesa dos direitos do cidadão e cedeu-lhe a prerrogativa de revisar os atos dos demais poderes do Estado e da administração pública, por meio do controle de constitucionalidade. Ao fazer isso, deu-lhe visibilidade, modificando o lugar que ocupa como poder político do Estado. De um lado o Judiciário se transformou em árbitro nas disputas travadas entre o Executivo e o Legislativo, como é possível verificar nos recentes episódios envolvendo as CPIs. De outro, passou a ser um grande filtro por meio do qual é questionada toda e qualquer política do governo. Com tal visibilidade, seu desempenho também passou a ser discutido, inclusive como prestador de serviços públicos.

Mas como responder às demandas da sociedade de forma eficiente, com planejamento e transparência das suas atividades, se a instituição nunca esteve capacitada para isso e tampouco via com bons olhos a necessidade de prestação de contas? Esse é o dilema pelo qual passamos e, com a reforma do Judiciário, realizada em 2005, e a criação do Conselho Nacional de Justiça, intensificou-se.

Ao contrário do que ocorreu nos demais países que contam com conselhos de Justiça para prevenir interferências políticas do Executivo e do Legislativo nas atividades do Judiciário, no Brasil esse instituto foi criado diante da percepção de que era necessário dar transparência e prestar contas de um serviço público muito pouco conhecido pela população. Basta verificar a inconsistência, quando não ausência de dados e informações, sobre as atividades desenvolvidas pelo Judiciário. É de espantar que somente a partir de 2004 passamos a ter acesso informações sobre os Judiciários estaduais e a Justiça Federal com os diagnósticos realizados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Ministério da Justiça. E, mesmo assim, enfrentando inúmeras reações em contrário. Em recente pesquisa que realizei nos Judiciários estaduais foi possível perceber que a produção e a publicação de informações sobre suas atividades ainda são vistas como forma de interferência no exercício de sua função e, se essas informações existem, e é possível dizer que sim, elas não são confiáveis e tampouco estão organizadas ou são utilizadas para a realização de planejamento e administração.

A percepção de que a transparência e a prestação de contas à sociedade, além de critérios democráticos, são instrumentos essenciais para a realização de planejamento e controle administrativo da instituição é outra necessidade que deve ser apreendida pelo Judiciário. Os juízes não são selecionados ou treinados para exercer atividades administrativas. Nesse sentido, é preciso perceber a importância de profissionais especializados nessas áreas. Como prestador de serviço que é, o Judiciário deve ser avaliado sob critérios de eficiência utilizados na administração pública, assim como os demais serviços prestados pelo Estado. Ora, se a administração pública, de acordo com a Constituição Federal, deve ser exercida seguindo os princípios da moralidade e da impessoalidade, qual seria o critério que liberaria o Judiciário de se submeter a essas regras? Não se trata de avaliar o desempenho desses funcionários, mas sim buscar critérios públicos e transparentes na sua seleção.

O papel do CNJ não é e não será fácil. Entretanto, o simples fato de pôr em pauta certas questões, como ocorreu nesta semana acerca do nepotismo no Judiciário, produz resultados extremamente positivos para a democracia brasileira, para o melhor desempenho do Judiciário e, conseqüentemente, para sua imagem. A decisão do STF em validar regulamento sobre o nepotismo foi fundamental para a melhora desse quadro.