Título: Palmadas
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

Talvez estejamos diante uma das maiores excrescências em termos de projeto de lei, o que procura proibir que pais punam seus filhos com palmadas. O projeto encontra-se em fase avançada na Câmara dos Deputados, sem que esse "avanço" signifique uma lei avançada caso seja eventualmente aprovada. Aparentemente o seu objetivo pode parecer nobre, como se, assim, houvesse um progresso no que diz respeito aos direitos humanos ou a uma relação mais "correta" entre pais e filhos. Como sucede freqüentemente em tais casos, o discurso do politicamente correto embute, por uma lei, o Estado dentro da família, tornando-a tributária de uma instância que "sabe" o que é melhor para os seus membros. De onde, aliás, provém essa "sabedoria", senão de indivíduos, grupos e partidos que se arrogam essa posição como se soubessem o que é melhor para cada cidadão individualmente considerado? A célebre "palmadinha" será criminalizada!

Uma questão das mais relevantes consiste em determinar onde termina a soberania do Estado e onde são estabelecidas fronteiras que impedem a sua atuação, que delimitem que a sua noção de bem se introduza. O Estado, por exemplo, poderia ter a função de reger as relações de poder entre os cidadãos, uma função de legalidade ao assegurar a paz pública e a de evitar uma exacerbação das tensões sociais via gritantes desigualdades, sem que daí se siga uma outra função, a que consiste em dizer e impor para cada um o que considera como o "bem". Sociedades totalitárias foram aquelas que "sabiam" o que deveria ser a humanidade e procuraram impor, a ferro e fogo, esse tipo de sabedoria, esse tipo de verdade, considerado, então, como sendo de valor absoluto. Essa situação-limite, em que a própria política perde seu sentido, pode mostrar-nos a que ponto pode chegar a atuação do Estado se um freio não for posto à sua ação, e ele começa em casos tão anódinos como o de uma "palmadinha".

A relação pai/filhos se fez, historicamente, ao abrigo do Estado, a partir de regras que foram evoluindo conforme as mudanças de mentalidade e de concepção do mundo. Um traço distintivo desse processo consiste em que essas regras foram se fazendo segundo as transformações relativas a idéias que foram ocorrendo, sem que coubesse ao Estado decidir pelo tipo de relação a ser implementado. Idéias configuram o nosso mundo e, na medida em que essas idéias mudam, o mesmo ocorre com as relações humanas às quais dão forma. Assim, pais podem perfeitamente escolher não punir seus filhos com palmadas, enquanto outros pensam ser necessária a aplicação desse tipo de castigo. Em todo caso, cabe aos pais a escolha daquilo que pensam ser o melhor para os seus filhos. O que não podem, porém, é renunciar a esse poder de escolha em benefício de uma instância estatal que por eles decida. Se abdicarem desse direito, darão mais um passo para uma condição servil.

Imaginem o Estado interferindo diretamente nas relações familiares, uma vez tendo se tornado lei uma regra que proíbe que pais punam os seus filhos com palmadas. O que acontecerá? Filhos processarão os seus pais? Utilizarão tal medida como instrumento de chantagem? Será necessária a contratação de advogados para que as "partes" se defendam? E partes aqui vêm a significar "partes desmembradas" de um corpo que era uno, e esse processo de desmembramento seria operado pelo Estado, que romperia a unidade familiar. Se o Estado já aparece como comensal na mesa da casa por intermédio de uma tributação que alcança em torno de 40% da renda familiar, comendo literalmente o que poderia ser aproveitado de uma outra maneira pela família, ele se coloca, ainda, na posição de saber o que é o bem da família, disciplinando a sua relação. Trata-se, sem dúvida, de um comensal bastante invasivo, a ponto de destituir a autoridade parental.

Uma situação completamente distinta é a da punição por palmadas na escola, como era usual em determinados países, porque então o Estado assumia para si uma prerrogativa que não lhe dizia respeito, a de impor uma determinada regra de conduta que deveria ser estabelecida pela família. Sabe esta aquilo que é melhor para os seus, sem necessitar do Estado para exercer esse tipo de prerrogativa sua. Na verdade o Estado estaria exercendo uma função alheia, salvo se houvesse uma delegação explícita, concedida pela família nesse sentido. No momento em que o Estado deixou de punir corporalmente as crianças na escola, ele deixou de praticar uma arbitrariedade que ele mesmo se havia concedido. Aliás, seria essa uma boa razão para um referendo. Que tais as seguintes perguntas: "Cabe ao Estado disciplinar as relações entre pais e filhos? Cabe ao Estado determinar se palmadas devam ou não ser aplicadas por pais aos seus filhos? Devem os pais decidir por si mesmos se aplicarão ou não palmadas a seus filhos?"

Ora, se a autoridade parental é debilitada, senão anulada, cria-se uma situação de anomia, de ausência de regras, a partir da qual as situações de agressão, de ameaças e de desrespeito podem se desenvolver. Em vez de coibir uma situação desse tipo, o projeto de lei em questão pode, ao contrário do pretendido, propiciar situações desse tipo, fazendo com que filhos se ancorem no Estado e não na família. Pais, por sua vez, deveriam ter sempre em mente que, se punirem seus filhos com "palmadinhas", o Estado, em sua onipotência, poderá irromper em seu lar, aplicando normas e estipulando o que cada um deve fazer. O dever ser moral se esvai em proveito de uma instância estatal, que passaria a controlar ainda mais a vida de cada cidadão, reduzindo drasticamente a liberdade de escolha e minando a base mesma da família.