Título: Despudor sem contestação
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Já dura há tanto tempo o itinerante carnaval reeleitoral do presidente Lula que, à primeira vista, pouco haveria a acrescentar aos desfiles programados para esta semana de baixos teores produtivos que antecede a celebração brasileira por excelência. Depois de uma incursão ao Rio Grande do Sul, onde, na mesma sexta-feira, marcou ponto em eventos tão díspares como uma assembléia do Conselho Mundial das Igrejas e a abertura da Festa Nacional da Uva, o presidente-em-movimento desfilou ontem em Pernambuco (duas vezes), na Bahia e em Alagoas. Hoje, pulará do Piauí para o Maranhão e o Pará. Seria patético se não fosse um despudor - e um crime eleitoral impune.

Em setembro de 2004, Lula se deslocou até o Recife para inaugurar o novo terminal de passageiros do Aeroporto dos Guararapes. Ontem, lá estava ele mais uma vez, inaugurando uma obra tão momentosa quanto possam ser as novas pontes de embarque do mesmíssimo terminal. Só isso já autorizaria parafraseá-lo: nunca antes neste país um presidente conseguiu inventar tantos pretextos para aparecer nos telejornais um dia sim, o outro também. Há mais, no entanto: dois lançamentos de pedra fundamental de campi universitários, com "visita ao futuro prédio" (sic) de um deles; duas visitas a obras em outras universidades federais - e um "anúncio das obras do novo campus" de uma terceira.

Quando a agenda de viagens do presidente já começava a rasgar as costuras do caderninho, de tantos sucessivos acréscimos, ele se dignou explicar o sem-fim de viagens a que se entregava, faltando pouco para parecer que o Criador o dotara do dom da ubiqüidade. Pena que a explicação fosse chacrinhesca, feita para confundir - a Justiça Eleitoral, antes de mais nada - e não para esclarecer. "Nós trabalhamos três anos plantando. Agora está na hora de nós colhermos", disse numa de suas raras entrevistas, em 22 de janeiro. "Eu vou continuar andando no limite do tempo que eu tenha para tomar decisão (de assumir oficialmente que disputará o segundo mandato). Eu não sou obrigado a assumir candidatura. Quem são obrigados são os adversários, que têm de se afastar em março."

Ao se fingir de presidente para não ser pilhado como o que é - um candidato que se serve da condição de presidente para promover a sua candidatura -, Lula como que se apropriou, a fim de escarnecer da legislação eleitoral, da língua para fora que é a marca dos Rolling Stones. Mas alguém há de tê-lo advertido de que a versão pastoral da colheita poderia não bastar para neutralizar uma ação judicial por seus safáris em busca de votos. Pois, enquanto a sua equipe tratava de tomar providências cosméticas - no sentido de disfarçar a feiúra ética do comportamento do chefe -, pedindo à companheirada que se abstenha de falar em reeleição nos palanques armados para isso, Lula invocou um novo pretexto, presumivelmente à prova de processos, para continuar fazendo mais do mesmo.

Ele viaja para fiscalizar o andamento dos seus programas. Como se nem os seus ministros fossem capazes de se desincumbir a contento da função de mestres-de-obras, Lula fabricou a seguinte rationale: "Um governante tem que visitar para ver se está acontecendo aquilo que ele decidiu fazer", disse no programa de rádio Café com o presidente, na segunda-feira, "porque, muitas vezes, a gente decide e as coisas demoram mais do que o previsto." E reforçou, falando especificamente do projeto de interiorização do ensino superior federal: "Vou fiscalizar para saber se as obras estão andando como eu quero que andem." Mesmo presumindo que ele saiba como quer que andem - o que engloba mais do que acompanhar o cumprimento de um cronograma de trabalho -, o argumento desdenha da inteligência do público.

A grande sorte de Lula é que a atual fase de bonança econômica, combinada com a percepção de que ele é um presidente voltado para "o social", torna o eleitor típico indulgente com as suas estripulias. No mínimo, concede-lhe o benefício da dúvida - até por não ter diante de si outra figura legitimada pela admiração popular para desmascarar os atos e o monólogo eleitoral do presidente. Sem uma alternativa programática ao lulismo - e, sobretudo para encarná-la, sem um nome que o eleitor respeite, admire e com quem, afinal, se identifique -, a oposição também contribui para a reeleição do presidente ao exibir o seu próprio desnorteamento e os seus tropeços que só fazem desmoralizá-la.