Título: Governo investe em escola rural
Autor: Renata Cafardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2006, Vida&, p. A20

Revalorização do ensino no campo inclui na carga horária o tempo em que aluno trabalha com a família

As primeiras diferenças estão logo ali. Pés que teimam em ficar descalços na sala de aula, a professora que recebe goiabas de presente, a terra vermelha do lado de fora. Dos 55 milhões de estudantes brasileiros, 7,6 milhões estão em escolas rurais, quase esquecidas pelas políticas públicas por muitos anos. Mas um movimento recente, que começou com uma mudança de nome - elas passaram a se chamar escolas do campo e não mais rurais - agora já transforma currículos, didática e calendário, levando em conta as especificidades da realidade local.

Os números deixam mais evidentes as peculiaridades. Segundo estudos do Ministério da Educação (MEC), a escolaridade média de um adolescente de 15 anos no campo é de 4 anos, enquanto na área urbana é de 7 anos. Mesmo tendo apenas 13% do total de alunos do País, metade das escolas brasileiras (107 mil) estão em áreas rurais. Mas 50% delas têm só uma sala de aula - nas cidades, mais de metade têm acima de 300 alunos.

A queda na densidade demográfica no meio rural ao longo dos anos, principalmente a partir da década de 70, com o forte êxodo para as cidades, levou governos e prefeituras a desistirem de investir na educação no campo. No Estado de São Paulo, estima-se que havia 15 mil salas de aula nos anos 50; hoje são 1.867 escolas, quase todas mantidas por prefeituras. A política passou a ser usar o transporte escolar para levar as crianças para estudar na cidade.

JANELAS DE MADEIRA

Em Matão, a 300 quilômetros da capital, as crianças da 4ª série da Escola Tamanduá, que fica dentro de uma fazenda, desenham a escola do seus sonhos no primeiro dia de aula. No papel, imitam as construções do início do século passado, com janelas de madeira e telhado - um estilo que se vê por todos os lados. Há flores, árvores e até chaminés nas escolas dos sonhos. "Aqui tem mais espaço e faz menos calor que na cidade, porque não tem asfalto", explica Caroline Tomé Sotopietro, de 10 anos, filha de agricultores.

A cidade, rodeada por plantações de milho, laranja e cana, tem 369 alunos de ensino fundamental em três escolas rurais. No ano passado, o secretário municipal de Educação, Alexandre Luiz Martins de Freitas, iniciou o projeto Escola do Campo. A mesma idéia já havia sido desenvolvida na cidade vizinha, Araraquara, cujas escolas da zona rural foram premiadas pela Fundação Getulio Vargas em 2004.

Matão terá também escolas do campo com cozinha experimental, bibliotecas e salas de informática com internet banda larga. "Fora o investimento em estrutura, valorizamos a idéia de pertencimento e incorporamos os modos de vida das pessoas do campo", diz Freitas. As crianças da Escola Enide Santa Ferraz Marquezi, que fica ao lado de um assentamento, são levadas todo dia pela professora para passear do lado de fora. As tarefas: dependurar-se em galhos ou colher tangerinas no pomar.

Os projetos que mobilizaram a escola em 2005 foram os de visita e estudo de um apiário e de um criadouro de avestruzes, ambos vizinhos. "Antes disso, tínhamos de cumprir os mesmos programas que escolas da cidade. Lá, os programas envolvem arrecadação de coisas para crianças carentes, mas tenho várias crianças carentes aqui na escola mesmo", diz a diretora Daniela Donato. Os índices de evasão são nulos nas novas escolas rurais.

As idéias que ganham forma hoje em Matão começaram a surgir no fim dos anos 90 em congressos e seminários que destacavam a importância da educação no campo. Educadores, sociólogos e outros especialistas passaram a defender uma retomada da escola na zona rural. E argumentar que ela ajudava na fixação de seus moradores, na preservação da cultura e no desenvolvimento sustentável dos pequenos agricultores.

Com o apoio do Ministério da Educação (MEC) foram aprovadas, em 2002, as primeiras diretrizes pedagógicas para a organização de escolas no campo. Neste mês, o Conselho Nacional de Educação (CNE) reconheceu como dias letivos o período em que estudantes ficam em casa desenvolvendo projetos agrícolas com suas famílias, monitorados pelas escolas. É a chamada Pedagogia da Alternância, que leva em conta o fato de os jovens da zona rural não poderem cumprir o calendário escolar convencional porque trabalham nas suas propriedades.

VISÃO URBANOCÊNTRICA

Um relatório sobre pobreza em países da América Latina divulgado na semana passada pelo Banco Mundial menciona que o risco de insucesso escolar é 40% mais alto nas áreas rurais do Brasil, Colômbia e Nicarágua e maior ainda na República Dominicana e em El Salvador. Os números do País mostram que 70% dos alunos do campo estudam em séries inadequadas para suas idades. "O que aconteceu no passado foi que criaram uma visão urbanocêntrica das escolas do campo. Mas a rotina e a lógica do campo são completamente diferentes da cidade", diz o secretário de Alfabetização, Inclusão e Diversidade do MEC, Ricardo Henriques.

Um dos desafios que o ministério assumiu recentemente foi o de capacitar professores para trabalhar nas chamadas salas multisseriadas, ou seja, com alunos de várias idades por causa do pequeno número de crianças nas escolas. Apesar de não serem consideradas ideais para a aprendizagem, elas resistem e estão presentes em 25% das escolas.

O Brasil tem hoje 354 mil professores em escolas na zona rural. Segundo números do MEC, mais de 4 mil deles não completaram o fundamental. Dos que dão aulas entre 5ª e 8ª séries, 42% têm curso superior, enquanto na zona urbana eles são quase 80%.

Em média, os professores ainda ganham a metade do que seus colegas da cidade. Mas não reclamam. "A gente aqui é a tia de antigamente, recebe presente, tem carinho, respeito", diz a professora de Matão Ivete de Oliveira, com a aluna Tainara abraçada à sua cintura .