Título: Crise revela a Dinamarca xenófoba
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2006, Internacional, p. A19

Publicação de caricaturas tem mais a ver com hostilidade a muçulmanos do que com a liberdade de expressão

Parece haver alguma surpresa no fato de o povo dinamarquês e seu governo estarem apoiando o jornal Jyllands-Posten e sua decisão de publicar as charges sobre o profeta Maomé em setembro. Afinal, os dinamarqueses não costumam ser particularmente tolerantes e respeitosos com os outros?

Não totalmente. A reputação da Dinamarca como nação com uma longa tradição de tolerância - solidificada pelo resgate de judeus dinamarqueses que iam ser deportados para campos de concentração nazistas em 1943 e pela grande quantidade de ajuda humanitária que o país hoje proporciona ao exterior - é uma espécie de mito.

O que muitos estrangeiros não conseguiram perceber é que nós dinamarqueses fomos ficando cada vez mais xenófobos ao longo dos anos. A meu ver, a publicação das charges teve pouco a ver com um debate sobre autocensura e liberdade de expressão. Ela deve ser vista antes no contexto de um clima de hostilidade generalizada para com tudo que seja muçulmano na Dinamarca.

Há mais de 200 mil muçulmanos na Dinamarca, um país com uma população de 5,4 milhões de habitantes. Algumas décadas atrás, a Dinamarca não abrigava nenhum muçulmano. Não surpreende, pois, que o Islã passasse a ser visto por muitos como uma ameaça à cultura dinamarquesa.

Durante 20 anos, os muçulmanos não tiveram permissão de erguer mesquitas em Copenhague. E mais, não havia também cemitérios muçulmanos na Dinamarca, fazendo com que os corpos de muçulmanos aqui falecidos tivessem de ser levados de avião para seus países de origem para um sepultamento apropriado.

Recentemente, o ministro de Assuntos Culturais, Brian Mikkelsen, do Partido Popular Conservador, pediu a acadêmicos, artistas e escritores para criarem um cânone dinamarquês de arte, música, literatura e cinema. O propósito ostensivo era preservar nossos clássicos domésticos. Mas antes da divulgação do cânone, no mês passado, Mikkelsen revelou qual teria sido o real objetivo do exercício: criar uma última linha de defesa contra a influência do Islã na Dinamarca.

"Na Dinamarca, temos assistido ao surgimento de uma sociedade paralela em que minorias praticam os próprios valores medievais e suas opiniões antidemocráticas", disse ele a colegas conservadores numa conferência no último verão. "Esta é a nova frente em nossa guerra cultural."

Se uma maioria de dinamarqueses realmente não acreditasse nessa ameaça islâmica, isso pareceria um pretexto bizarro. Mas ela acredita. Quando a bandeira dinamarquesa foi queimada nas ruas de países árabes, a reação por aqui foi de ultraje e apelos para um apoio mais firme ao Jyllands-Posten. O governo de centro-direita melhorou sua posição nas sondagens, assim como o Partido Popular Dinamarquês, contrário aos imigrantes, sem o qual o governo não teria maioria no Parlamento.

Agora, a opinião geral, expressa na imprensa e entre a maioria dos dinamarqueses, é que os líderes muçulmanos que lideraram os protestos na Dinamarca deveriam ter sua condição de cidadãos reavaliada porque traíram os dinamarqueses ao não manter a controvérsia dentro do país.

Mas a história real é que eles e seus seguidores ficaram sem opções. Eles tentaram fazer o Jyllans-Posten admitir sua ofensa. Tentaram angariar apoio do governo e da oposição. Pediram a um promotor local que movesse uma ação judicial nos termos da lei de blasfêmia do país. E pediram a embaixadores de países muçulmanos na Dinamarca para se reunirem com o primeiro-ministro Anders Fogh Rasmussen.

Foram rejeitados em todas as iniciativas, embora um promotor público esteja revendo atualmente o caso. Mas, na verdade, que opção lhes restava?

Este não é o único exemplo do novo pensamento mágico da Dinamarca. Depois das queimas de bandeiras, a mídia dinamarquesa começou a se referir à cruz branca contra um fundo vermelho da bandeira como um símbolo cristão. Isso é um contra-senso pois viemos a desassociar cada vez mais a bandeira da religião. A Dinamarca é um dos países mais seculares da Europa. Só 3% dos dinamarqueses freqüentam a igreja uma vez por semana.

Ainda assim, a mídia estava certa. Até certo ponto. Reza a lenda que a bandeira caiu do céu durante uma batalha entre os dinamarqueses e os estonianos há quase 800 anos. Foi um sinal de Deus, e conduziu os dinamarqueses à vitória. Agora, essa bandeira se tornou em todo mundo um símbolo do desprezo da Dinamarca por outra religião mundial.