Título: 'País avança, nepotismo está cercado'
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2006, Nacional, p. A11

Simon Schwartzman, sociólogo, professor e economista

O forte ataque ao nepotismo desencadeado na quinta-feira pelo Supremo Tribunal Federal - que obrigou todos os tribunais brasileiros a demitir parentes de seus ministros, juízes e desembargadores - não elimina esse mau hábito mas é um sinal de que a reação da sociedade contra ele está ficando forte. "A decisão do STF mostra que a sociedade está mais atenta. E, na medida em que está mais atenta, esse tipo de comportamento está cercado e vai perdendo espaço", avisa o professor e economista Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), no Rio de Janeiro.

O problema é que não basta criar uma lei. "Se o juiz não consegue fazer de um jeito, vai fazer de outro", adverte - por exemplo, cada um pode empregar o parente do outro. Isso não faz Schwartzman perder o otimismo. Ele acha significativo que, no dia seguinte à histórica decisão do STF - que deverá cortar do Judiciário cerca de 1.700 pessoas -, o presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PC do B-SP), tenha anunciado que a Câmara vai votar, ainda em março, um projeto para dar fim também ao nepotismo no Legislativo. "Acho que pode ser como uma bola de neve", comenta ele.

Veterano estudioso da sociedade brasileira, Schwartzman presidiu, entre 1994 e 1998, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Formado em Ciências Sociais pela UFMG, passou por universidades como USP, Berkeley, Stanford, Columbia e Oxford. Ele chama a atenção para dois processos importantes que estão em andamento no País: a crescente pressão da opinião pública, que amplia o controle externo dos Poderes, e a modernização da Justiça, onde há gente jovem "para quem importa mais ser um bom juiz do que distribuir vantagens".

A decisão do Supremo vai ajudar a acabar com o nepotismo?

Só a formalidade da lei não resolve. O problema não é ter lei para controlar o emprego da tia ou da prima. O problema é que a lei é burlada. Se a intenção do juiz é favorecer amigos ou parentes, ele vai fazer isso de outro jeito. Vai, por exemplo, trocar com o juiz do lado. "Você contrata minha mulher e eu contrato o seu filho". Isso não altera o que está no fundo, os valores das pessoas que têm cargos públicos e os usam desse modo.

Como mudar essas coisas, que foram implantadas nos tempos coloniais e resistem até hoje?

A gente também não pode incorrer no erro de ficar dizendo que "isso é um defeito da alma brasileira, que vem de 500 anos etc". Temos, sim, uma tradição patrimonialista. O cargo público é uma propriedade particular de seu ocupante. Tem a ver com a história portuguesa. Mas também tem a ver, e muito, com um Estado que é pouco controlado pela sociedade. E, na medida em que a sociedade vai ficando mais atenta, esse tipo de comportamento está cercado, vai perdendo espaço.

Não é, então, algo tão arraigado e inevitável. Um dia vai acabar.

Precisamos ter cuidado com previsões de inevitabilidade, que criam uma situação sem saída. O fato é que a sociedade está mais atenta, a imprensa tem um forte papel, o empresariado tem mais voz, há movimentos sociais expressivos. E o nepotismo é um tipo de formação antiga que na verdade nunca foi todo-poderosa, como se afirma às vezes. Ela sempre confrontou outros grupos e interesses, teve de negociar.

A Justiça pode fazer mais do que vem fazendo?

Toda a área jurídica no Brasil passa hoje por um processo de mérito. Temos uma nova geração entrando na magistratura. Gente jovem que se dedica a estudar a sério e para a qual importa mais ser um bom juiz do que distribuir vantagens aos parentes e amigos. A criação do Ministério Público foi um grande avanço. Também no serviço público percebe-se aos poucos a profissionalização das carreiras, em áreas como a saúde, as estatais. Isso é uma tendência importante.

Onde fica, nisso, o Brasil dos grotões, onde o nepotismo é normal?

Acho que se trata de um processo complicado e não digo que os atuais avanços vão necessariamente dar certo. Mas há aí outra questão importante, que é a dos cargos de confiança. Temos de reavaliar quantos cargos de confiança uma autoridade pode ter. Há um abuso aí, um excesso de cargos em todos os Poderes, em todos os níveis. É urgente criar um serviço público constituído de cargos de carreira e um número restrito de cargos de confiança. Por trás disso há uma prática comum, que é dar o cargo e tomar do nomeado o salário ou boa parte dele.

As medidas contra o nepotismo não podem ser esquecidas e ficar tudo como está, como parece ocorrer com as CPIs?

Acho que o País vai aprendendo. Tudo o que apareceu de corrupção, nos últimos meses, nos leva a mais transparência. Claro que coisas podem ser esquecidas. Os episódios de 2005 não vão ter toda força daqui a seis meses. Mas há algo irreversível: o PT foi muito ferido nesse processo.O Lula hoje é um candidato solitário. É ele, não um grupo. Ele pode ter votos, mas o PT não se sabe quantos o ajudará. Isso é um aprendizado da sociedade.