Título: História longa, vista curta, cabeça torta
Autor: Sérgio Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Como o galo de uma das peças de Edmond Rostand, o mesmo autor de Cyrano de Bergerac, o presidente Lula parece imaginar que tudo de bom que ocorre em seu mandato se deve a méritos exclusivos seus ou de seu governo. O raciocínio, por assim dizer, se inverte quando se trata de coisa ruim ou desabonadora. Nesse caso, responsabilidades que lhe caberiam exclusiva ou principalmente são debitadas na conta do passado recente (o governo FHC) ou remoto (os 500 anos de história brasileira).

A falsificação da história e do presente não é feita por ignorância. Compõe, na verdade, um projeto de poder que requer conservar, tanto mais quanto mais a realidade o desmente, o mito da excepcionalidade do presidente-operário.

É o que restou do projeto revolucionário que esteve na origem do PT, apoiado na crença meio ingênua e profundamente autoritária de que é possível e desejável romper os "grilhões do passado" e inaugurar o "tempo novo" por meio de uma intervenção excepcional na ordem política e econômica. Já desfeita essa crença, o PT continuou a negar-se, por cálculo tanto quanto por ideologia, a tomar parte no processo de elaboração e deliberação conjunta das reformas do Estado e da economia. Contra quase tudo, da Constituição de 1988 ao Plano Real, optou por investir na construção carismática do seu principal líder, hoje presidente da República, e na formação de sua máquina partidária.

A excepcionalidade de Lula é verdadeira quando se refere à sua origem e trajetória. Ela é falsa, porém, quando diz respeito ao governo que preside. No que tem de melhor, ou menos ruim, ele é conservador. No que tem de pior, representa retrocesso no que já se havia avançado em relação às práticas políticas tradicionais, entre elas o messianismo. Se alguma excepcionalidade existe, ela é negativa: o sistema de corrupção montado para abastecimento de uma máquina partidária que se tornou voraz de recursos políticos e financeiros, com sobras menores para seus aliados de ocasião, em nome de um projeto de poder travestido de "progressista".

O argumento da suposta excepcionalidade positiva do atual governo - aquele que começa invariavelmente com o "nunca antes neste país" - não resiste à mais ligeira das análises. O saldo é especialmente negativo quando se olham as condições para o desenvolvimento de longo prazo.

Piorou a qualidade do ajuste fiscal herdado do governo anterior, com a elevação ainda maior da carga tributária, de 35% para 38% do Produto Interno Bruto (PIB), e com a expansão dos gastos correntes, que, a persistir no ritmo atual, fará com que dobrem de tamanho em dez anos. Preocupam, por isso, o último aumento do salário mínimo, concedido no embalo eleitoral, e a ampliação do importante Bolsa-Família, programa iniciado no governo anterior. Transformado em instrumento de política assistencial, ele cria custos fiscais crescentes e benefícios sociais decrescentes ao longo do tempo, na medida em que alivia os sintomas, mas não ataca as causas fundamentais da pobreza.

A expansão do gasto corrente vem acompanhada da queda do investimento do governo federal em infra-estrutura. Em nenhum outro setor os efeitos dessa queda são tão visíveis quanto nas rodovias federais, objeto da controversa, para dizer o menos, operação tapa-buraco. À falta de investimento público soma-se a timidez do investimento privado, pelo acúmulo de incertezas quanto às regras do jogo. As privatizações foram interrompidas. O projeto das parcerias público-privadas, apresentado com grande alarde e salvo a tempo pelas oposições de se tornar mais um duto de recursos públicos para bolsos privados, não resultou ainda em nenhum investimento novo no nível federal (só agora dois projetos devem ser anunciados).

Na área da educação, o recém-aprovado projeto de lei do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) incorre em tantos erros de concepção, evitáveis numa versão politicamente mais discreta e tecnicamente mais eficaz, que ameaça comprometer o que já se havia conseguido no financiamento à educação básica. Ou isso ou, se prevalecerem as modificações feitas pelo Congresso, vai-se produzir mais um grave fator de desequilíbrio fiscal.

Tida como ponto alto do governo, tampouco a política econômica merece ser qualificada de excepcional. Não é excepcional, desde logo, porque conservou muito mais do que inovou em relação à política econômica do segundo mandato do governo anterior. E também não é excepcional em seus resultados. Basta dizer que o Brasil cresceu nos últimos três anos abaixo do crescimento da economia mundial (a maior diferença de desempenho entre nós e o mundo já registrada) e muito abaixo da média dos demais países emergentes. Excepcionais, mesmo, só as condições internacionais que beneficiaram a gestão da política econômica e que são a causa fundamental da sua maior conquista: o fortalecimento das contas externas (a despeito de uma apreciação do câmbio que supera de longe a ocorrida no tão criticado primeiro mandato do governo anterior). Conquista insuficiente, porém, para aumentar significativamente o potencial de crescimento de longo prazo da economia brasileira.

Ao agir e falar como o galo de Rostand, Lula fica mal na foto da história. Se insiste na pose, pelo menos poderia inspirar-se nos galos do belo poema Tecendo a Manhã, de João Cabral de Melo Neto. Talvez compreendesse que as manhãs são tecidas pelo encadeamento sucessivo de diferentes cantos. E que a qualidade da tessitura depende de que o galo que veio antes saiba lançar o seu canto ao que veio depois.

Lula deveria estar um pouco mais preocupado com a qualidade dessa sucessão de cantos e um pouco menos obcecado com o próximo canto ou bicada que dará na sua sôfrega campanha à reeleição. Seria pedir demais?

Sérgio Fausto é coordenador de Eventos e Projetos do Instituto Fernando Henrique Cardoso