Título: Exílio de companheiro
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Na terça-feira de carnaval, Marilena Nakano, Bruno Daniel e seus três filhos inauguraram na História política brasileira a prática inusitada do "exílio de companheiro". O casal é de militantes petistas históricos - ela foi secretária da Educação na prefeitura de Santo André na gestão do irmão dele, Celso Daniel. E agora, com um correligionário do PT, partido no qual ambos militaram, na chefia do governo federal, ambos se viram forçados a deixar de repente seus empregos e cuidar para que os filhos interrompessem os estudos e se abrigassem em lugar mais seguro no exterior para evitar ser atingidos pelos disparos das armas empunhadas pelos até agora não identificados mandantes do assassínio de seu ilustre parente.

A fuga para além das fronteiras nacionais não é uma experiência inédita na vida desses dois militantes de esquerda, que lutaram contra o arbítrio da ditadura militar. Mas a situação que a família Daniel vive agora é muito mais absurda que a experimentada por seus companheiros que foram obrigados a abandonar o País há 40 anos. Estes foram banidos por um regime autoritário, truculento e discricionário, que não admitia oposição. Além disso, uma vez expatriados, seus amigos e familiares tinham tranqüilidade, liberdade e segurança para se comunicarem com eles sem medo de pôr a própria integridade física nem a deles em risco, pois no momento em que desembarcavam em qualquer país estrangeiro nada mais ameaçava suas vidas.

A situação da família Daniel - incluindo outro irmão de Celso, o oftalmologista João Francisco, levado pela situação esdrúxula a se tornar um nômade, mudando constantemente de residência e de local de trabalho para sobreviver, e, por extensão, sua prole - é de um absurdo ainda mais cruel. Pois os participantes dos movimentos de resistência à ditadura estavam conscientes dos riscos que corriam por violarem conscientemente as normas estabelecidas pelos inimigos no poder, pouco importando, no caso, se tais normas eram, ou não, legítimas. O clã Daniel, não! João Francisco, o irmão, a cunhada, os filhos e os sobrinhos não cometeram nenhum crime nem desafiaram o Estado brasileiro, hoje plenamente democrático. Eles apenas exercem o direito de discordar da versão oficial, defendida pelo PT e adotada pela polícia paulista, de que seu irmão teria sido mera vítima da banalidade do mal nesta nossa sociedade insegura, à qual a autoridade que exerce o monopólio do uso legítimo da força não consegue prover segurança.

Não se trata sequer de uma atitude singular do clã Daniel, tomada por razões emocionais de quem perdeu um irmão em circunstâncias trágicas. Qualquer brasileiro medianamente informado tem todo o direito de duvidar da versão do "crime comum", tantas são as evidências de que o ex-prefeito de Santo André foi, de fato, alvo de uma execução de mando. Não se trata de uma série de evidências alinhadas em reportagens de jornal, mas profissional e competentemente investigadas pelos promotores estaduais encarregados da elucidação do caso.

Ainda que a família do morto não tivesse razão nenhuma para duvidar da versão oficial, ela teria todo o direito de discordar dos resultados da investigação policial e cobrar da autoridade encarregada da punição dos criminosos uma ação mais eficiente. É revoltante saber que os parentes de uma vítima da violência têm de fugir das ameaças de quem eles acreditam ser os eventuais assassinos de seu ente querido, interrompendo seus projetos de vida para evitar serem dizimados pela ousadia de exigir que a verdade apareça e a justiça seja feita. Mais revoltante ainda é verificar como os dirigentes do governo federal e do PT - que, aliás, não têm sequer relações institucionais com a polícia estadual, sob o comando do governador Geraldo Alckmin, do PSDB -, além de insistirem, contra a lógica plana dos fatos, na hipótese do crime comum, se empenham em desqualificar os membros da família vitimada e lançar suspeitas descabidas sobre suas verdadeiras intenções.

O "exílio de companheiro" da família de Bruno Daniel, a vida clandestina imposta a seu irmão João Francisco e o anúncio da viagem de um filho deste para destino incerto e não sabido fora do País só acrescentam mais suspeitas sobre o papel que o PT e o governo têm cumprido nesse caso sobre o qual se alguma dúvida ainda resta é sobre quem foi o mandante - ou os mandantes.