Título: O STF e os crimes hediondos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Pela diferença de um voto, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de conceder a estupradores, homicidas e traficantes o direito ao regime de progressão da pena, em caso de bom comportamento, permitindo-lhes passar do regime fechado para o semi-aberto, é apenas um desdobramento do debate sobre o alcance e a eficácia da Lei dos Crimes Hediondos. A discussão começou há dois anos, quando o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, propôs a revisão desse texto legal, classificando-o como "receituário de uma vocalização conservadora em matéria de repressão à criminalidade".

Apresentada ao Conselho Nacional de Política Penitenciária, a proposta causou tanta polêmica que o próprio ministro Márcio Thomaz Bastos teve de explicar que revogação e revisão não são a mesma coisa. "O Ministério está propondo apenas uma avaliação da Lei dos Crimes Hediondos, para que possamos construir uma resposta penal para estes delitos que seja a mais eficiente e com menor custo social", afirmou. E, em artigo publicado neste jornal, disse que, por ter sido escrita "sob a emoção da violência", a Lei dos Crimes Hediondos satisfaz os anseios de segurança da sociedade, mas não coíbe a criminalidade.

"Essa lei é o mais claro exemplo (...) da legislação do pânico, ou seja, que é feita a partir de casos de grande repercussão", escreveu ele, após lembrar que foi por causa da mobilização da escritora Glória Perez, cuja filha foi assassinada por um colega de trabalho, que o Congresso incluiu o homicídio qualificado no rol de crimes hediondos. "Não é correto que apenas casos célebres (...) possam definir parâmetro para a política criminal do Estado", concluiu.

Mas até que ponto o ministro tem razão? Editada pelo governo Collor em 1990, a Lei dos Crimes Hediondos foi uma tentativa de resposta à violência no Rio de Janeiro. Entre outras inovações, ela classificou como inafiançáveis os crimes de seqüestro, tráfico e estupro e negou aos seus autores os benefícios da progressão da pena, obrigando-os a cumprir 2/3 da condenação em regime fechado.

O problema é que, como prisão não dá voto, a maioria dos Estados não construiu unidades especiais para acolher os condenados por crimes hediondos. Com isso, criminosos primários passaram a conviver com bandidos violentos, o que converteu o congestionado sistema prisional em fonte permanente de sangrentas rebeliões. Dos atuais 122 mil presidiários no Estado de São Paulo, 35% foram condenados por crimes hediondos.

Foi por isso que muitos governadores viram na proposta de Bastos uma forma de desafogar o sistema carcerário e aliviar os gastos do poder público com a construção de novas prisões. Em vez de investir para reduzir o déficit de 135 mil vagas nas prisões, os governadores passaram a afirmar que a Lei dos Crimes Hediondos aumentou os custos do sistema carcerário sem reduzir a violência. E, por pragmatismo, reivindicam a concessão do direito ao regime da progressão da pena a bandidos violentos.

A proposta de Bastos dividiu a magistratura. Numa análise mais técnica, vários juízes receberam a idéia de revisão da Lei dos crimes Hediondos, sob a alegação de que, por ter aumentado o rigor das punições de diferentes tipos de delitos, ela desequilibrou o sistema de penas do Código Penal. Outros juízes a rejeitaram sumariamente, afirmando que ela desmoraliza as instituições jurídicas. Segundo eles, de nada adianta ampliar a eficiência da polícia e da Justiça no trabalho de prender e condenar se os bandidos violentos podem voltar às ruas após cumprir só 1/6 da pena. Foi em meio a esse debate que, por 6 votos contra 5, o STF decidiu que seqüestradores, homicidas e traficantes têm direito ao regime aberto.

O placar apertado dá a medida da divisão do tribunal com relação a esse problema. Ao justificar o voto em favor do abrandamento da Lei dos Crimes Hediondos, alguns ministros invocaram a "dignidade da pessoa humana". Contudo, como as estatísticas revelam alarmantes índices de reincidência nesses tipos de crime, o que garante que muitos dos beneficiados por essa decisão tão humanitária da mais alta corte não voltarão a delinqüir, destruindo vidas e famílias? Só o tempo dirá se ela foi uma medida correta ou se não passará de um erro grave cometido por juízes que, apesar das boas intenções, nem sempre levam em conta os efeitos trágicos de seus votos para toda a sociedade.