Título: Cautela na reforma cambial
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Muita cautela é o mínimo que se pode recomendar em relação ao projeto de reforma cambial apresentado pelos senadores Fernando Bezerra e Renan Calheiros. A maior parte da proposta é polêmica e as objeções formuladas por funcionários do governo e por economistas independentes merecem consideração. Se não houver cuidado, o País poderá pagar muito caro por uns poucos benefícios importantes, como a simplificação das operações cambiais.

O projeto é baseado numa proposta da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Não por acaso, um de seus patrocinadores é um ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o senador Fernando Bezerra. O texto já foi melhorado, nos últimos dias, a partir de críticas de vários especialistas. Se for aprovado como está, os exportadores de bens e serviços (como empresas ligadas ao turismo) ficarão dispensados da cobertura cambial, a obrigação de converter em reais a moeda estrangeira obtida com as vendas ao exterior. Os empresários poderão manter contas em dólares, em instituições autorizadas pelo Banco Central (BC).

Poderão também usar esse dinheiro para pagar dívidas em dólares, sem ter de realizar uma transformação em reais e uma recompra de dólares. Segundo um especialista, essa facilidade poderá resultar numa economia de até 4%.

São vantagens evidentes para grandes empresas, como a Petrobrás, a Vale do Rio Doce e a Embraer. Mas o número de beneficiárias pode ser bem maior, pois muitas exportadoras importam insumos e equipamentos.

Os autores do projeto tiveram o cuidado, advertidos pelos críticos, de explicitar a proibição de uso dos dólares para pagamentos no País. Com essa restrição, será possível, em princípio, evitar a dolarização da economia. Dolarizar as transações seria uma forma de reintroduzir a indexação nas operações de curto prazo.

Mas a aprovação do texto poderá ocasionar outros inconvenientes importantes. Segundo especialistas, o projeto reduzirá o poder de ação do BC quando houver ataque especulativo à moeda nacional. Como os exportadores não serão obrigados a vender suas divisas, podendo mantê-las depositadas em bancos, a autoridade monetária terá maior dificuldade para acumular reservas.

Assim, a autoridade monetária terá menos munição para intervir no mercado, num momento de crise. Se houver fuga de capitais, o BC não poderá dispor dos dólares trazidos pelos empresários para tentar estabilizar o mercado e evitar, entre outras conseqüências, pressões inflacionárias. Nesse caso, a autoridade terá de sacrificar reservas escassas ou de elevar os juros drasticamente, como observou o economista João Sicsú, da UFRJ. O Brasil já passou por isso.

O projeto, podem argumentar seus defensores, autoriza o Conselho Monetário Nacional (CMN) a restringir o fluxo de moeda estrangeira e a outorgar ao BC o monopólio do câmbio, se houver dificuldades no balanço de pagamentos ou a iminência de uma crise. Não é uma boa solução. A mera hipótese de medidas excepcionais, em caso de instabilidade, pode ser fator de pânico e de agravamento de crise. É mais seguro saber que a autoridade dispõe, normalmente, dos meios de ação para intervir no mercado.

As novas normas, dizem também os críticos, poderão facilitar a lavagem de dinheiro, ao reduzir os controles de entrada e saída de moeda estrangeira.

Muitos detalhes ficarão na dependência de regulamentação pelas autoridades monetárias. Faltará definir, por exemplo, se os empresários poderão manter contas no Brasil e no exterior ou apenas no exterior.

Dois pontos são claros. Primeiro, essa reforma não garante um dos objetivos centrais de seus defensores: a desvalorização cambial. Os detentores de dólares continuarão lançando no mercado a moeda americana enquanto tiverem a expectativa de bons ganhos. Segundo, será preciso encontrar uma fórmula para garantir uma das poucas vantagens certas - a simplificação das operações cambiais - sem os perigos apontados pelos críticos. Será necessário, portanto, um longo e cuidadoso debate.