Título: As MPs e a governabilidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2006, Notas e Informações, p. A3

O instituto das medidas provisórias (MPs) está na Constituição por um equívoco. Durante a primeira fase dos trabalhos da Constituinte de 1988, os legisladores estruturaram o Estado segundo o modelo parlamentarista, que à época se imaginava ser o regime adequado à realidade da Nova República. Cabia, então, a adoção das MPs - instrumento que dá ao Poder Executivo a faculdade de legislar -, pois no parlamentarismo o Executivo é uma extensão do Legislativo. Mas, a meio caminho, os constituintes mudaram de idéia, preferindo o regime presidencialista. Como não se deram ao trabalho de refazer o que estava pronto, o resultado foi uma Constituição híbrida, apelidada de Cidadã, mas na verdade geradora não só de entraves ao desenvolvimento econômico e social do País, como de enfraquecimento das instituições, notadamente do Legislativo.

Concebida para que o Executivo pudesse legislar em casos de urgência e relevância - ou seja, para garantir a governabilidade em situações críticas -, as MPs tornaram-se um recurso corriqueiro usado pelo presidente da República para editar medidas triviais com força de lei, deixando o Congresso diante de fatos consumados.

Fosse o Congresso, nos últimos tempos, uma instituição que, além de respeitada pela opinião pública, se respeita, os excessos teriam sido contidos. Bastaria que o presidente da Casa por onde se inicia a tramitação da MP devolvesse a mensagem do presidente da República, por não ser o objeto da legislação urgente ou relevante. Mas o Congresso, que reflete o vigor cívico da maioria de seus membros, preferiu perder prerrogativas a enfrentar o Executivo, fonte inesgotável de prebendas e favores eleitorais.

E assim, desde que o instituto foi criado, em 1988, até junho de 2001 - quando foi aprovada emenda constitucional que alterou a tramitação congressual - foram editadas 2.230 medidas provisórias. De lá para cá, até a quarta-feira passada, foram editadas mais 279.

Num esforço para recuperar a prerrogativa parlamentar, o Senado aprovou, esta semana, projeto de emenda constitucional que estabelece que as MPs só terão eficácia após a Comissão de Constituição e Justiça da Casa por onde se iniciar a tramitação reconhecer a urgência e a relevância da matéria. Além disso, a tramitação se fará alternadamente, na Câmara e no Senado, com prazos mais razoáveis que os atuais para o trancamento da pauta.

Pode-se argumentar que o projeto de emenda constitucional, de autoria do senador Antonio Carlos Magalhães, chove no molhado, pois o Congresso já dispõe de instrumento para negar tramitação às MPs que não preencham os requisitos constitucionais. Ocorre, no entanto, que o uso desse instrumento depende da decisão monocrática do presidente da Câmara. Aprovada a emenda constitucional, o exame da urgência e relevância passa a ser compulsório, por uma comissão formada por membros de diversos partidos, inclusive os de oposição.

Se no Senado a aprovação do projeto de emenda constitucional foi relativamente fácil, o mesmo não deverá acontecer na Câmara, que já recusou tentativas anteriores de mudar as regras das MPs. O líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante, já anunciou que o governo jogará o seu peso contra a mudança. Segundo ele, haverá problemas de governabilidade se as medidas provisórias não tiverem força de lei no momento de sua edição.

Não era o que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva dizia na campanha eleitoral de 1998. "Assumo o compromisso", afirmou ele na sede da OAB, "de acabar com o uso indiscriminado de medidas provisórias. O atual governo (FHC) adotou mais MPs do que os decretos-leis editados pelos governos militares. Limitar-me-ei ao que prescreve a Constituição federal - para cuja elaboração contribuí - de só editar medidas provisórias em situações de excepcionalidade e emergência."

Mas logo deu o dito por não dito. Ainda mal acomodado na cadeira presidencial, assinou medida provisória criando a carreira de agente penitenciário federal. E, em três anos, editou 176 medidas, batendo - aí sim, o recorde do primeiro mandato de Fernando Henrique.