Título: Uma proposta perigosa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Tesouro e Banco Central deveriam trabalhar de forma articulada para controlar a inflação e o peso da dívida pública, segundo proposta apresentada pelo Conselho de Altos Estudos da Câmara dos Deputados. À primeira vista, a sugestão é criativa e mostra um caminho novo para a estabilização da economia nacional. O governo deveria trabalhar com duas metas para balizar sua política. Uma seria a meta de inflação, já adotada como referência para a política monetária. Outra seria uma relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB). Os dois alvos seriam fixados periodicamente, a cada quatro ou cinco anos, e as duas políticas seriam administradas de forma conjunta.

A idéia parece muito menos promissora quando se começa a analisar os detalhes da argumentação do Conselho de Altos Estudos da Câmara dos Deputados. As políticas teriam como instrumentos a taxa de juros, administrada pelo Banco Central, e o superávit primário das contas públicas, destinado a limitar ou a reduzir o peso econômico da dívida pública. Isso não é novo. A novidade é a "responsabilidade solidária do Banco Central e do Ministério da Fazenda pelo cumprimento de suas metas", segundo o documento.

Em outras palavras: de um lado, o Tesouro levaria em conta o efeito inflacionário das contas públicas, aumentando superávit primário em caso de necessidade; de outro, o Banco Central deveria observar o impacto da taxa de juros na dívida pública. Se necessário, relaxaria sua política, se os juros começassem a pressionar as contas do governo, dificultando a redução progressiva do endividamento.

Um comentário do economista César Mattos deixa mais claro o sentido real da proposta: "Um regime de metas de inflação, num país altamente endividado como o Brasil, precisa ser flexibilizado."

Com essa explicação, os defeitos da proposta ficam perfeitamente visíveis. Na prática, a acomodação seria feita, quase invariavelmente, na política monetária. O País teria de aceitar inflação mais alta, sempre que o combate às pressões inflacionárias pusesse em risco a redução da dívida pública. A idéia pode parecer sensata, mas de fato é perigosa. É um convite à leniência diante das pressões por maiores aumentos de preços.

A proposta é baseada num erro de percepção. O desajuste fundamental da economia brasileira não é causado por uma falha da política monetária. O problema está na área fiscal. O governo gasta demais e não faz o esforço necessário para mudar a situação.

O estudo erra, também, ao apontar o superávit primário - o dinheiro economizado para pagar juros - como o instrumento da política fiscal. O resultado primário não é instrumento. É um mero resultado aritmético, a diferença entre a arrecadação e o gasto corrente. Essa diferença tem sido positiva, há alguns anos, mas não porque o governo se tenha tornado muito mais austero. O resultado primário tem sido possibilitado principalmente pelo aumento da carga tributária.

Se houvesse um efetivo controle do gasto público, as pressões inflacionárias seriam menores e o Banco Central poderia adotar políticas mais amenas. Alcançar as metas de inflação definidas pelo Conselho Monetário Nacional seria muito mais fácil, porque as condições fiscais seriam muito mais favoráveis.

A melhor maneira de reduzir a relação dívida/PIB é implantar uma política fiscal realmente severa, que elimine os gastos excessivos e permita um melhor aproveitamento dos recursos públicos. Esse melhor aproveitamento favoreceria o crescimento econômico e, como conseqüência, um aumento saudável da arrecadação. Seria esse o círculo virtuoso capaz de sustentar desenvolvimento.

Qualquer proposta que passe longe do controle efetivo do gasto público e da reestruturação do sistema orçamentário será apenas mais um remendo - um remendo ruim, que tornaria a economia brasileira mais desajustada e mais vulnerável.

Uma efetiva reforma da gestão pública só será possível, no entanto, se o presidente da República estiver disposto a enfrentar uma tarefa politicamente custosa, a curto prazo, e muito difícil. Seria muito difícil negociar novos padrões de uso de recursos fiscais com o Congresso Nacional. Algum consultor da Câmara proporia uma reforma desse tipo?