Título: Grupo quer rede internacional para monitorar biotecnologia
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2006, Vida&, p. A10

Canadenses acham que medida não vai impedir a pesquisa e sim ajudar a acabar com preocupações que a prejudicariam

Abdallah Daar, especialista em BioéticaEntrevistaAssim como a energia nuclear, que pode ser usada tanto para combater o câncer quanto para construir bombas, a biotecnologia também pode ser aplicada tanto para fins pacíficos quanto terroristas. O mesmo conhecimento que serve para produzir vacinas pode ser usado na disseminação de doenças e outras armas biológicas. Diante disso, um grupo de pesquisadores e bioeticistas canadenses está propondo a criação de órgão internacional para monitorar pesquisas com biotecnologia, a exemplo do que faz a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) sobre pesquisas nucleares.

Que fique bem claro: a intenção não é impedir o desenvolvimento da biotecnologia, mas, justamente, impedir que as preocupações dos países ricos com o bioterrorismo não impeçam os países pobres de investir nesse tipo de pesquisa. "As biotecnologias têm permitido ao homem modificar organismos vivos de várias formas em benefício da saúde, da produção de alimentos, do combate à poluição e outros benefícios. Para que as preocupações com biosseguridade não prejudiquem as aplicações da biociência em prol do desenvolvimento, temos de alinhar essas agendas potencialmente conflitantes", dizem os autores do Joint Center for Bioethics da Universidade de Toronto.

Em um relatório intitulado DNA para a Paz, divulgado nesta semana, eles propõem a criação de uma rede internacional de cooperação e monitoramento de pesquisas com biotecnologia (a manipulação de organismos e processos biológicos para produção de medicamentos, vacinas, melhoramento de plantas e animais). Segundo o especialista Abdallah Daar, quanto mais pessoas trabalharem com biotecnologia, mas fácil será detectar possíveis maus usos da ciência. "Se você aperta o cerco, só vai empurrar as pessoas mal-intencionadas para fundos de garagem, onde poderão trabalhar sem ser notadas por ninguém", disse Daar ao Estado.

A iniciativa, segundo ele, poderia ser chefiada pelo G-8 (grupo dos países ricos) e funcionaria como uma rede de segurança de aeroporto, em que passageiros delatam atividades suspeitas às autoridades. Veja os destaques da entrevista.

O que os senhores estão propondo, exatamente?

Estamos sugerindo a criação de uma rede global de cientistas e formuladores de políticas públicas, que possam trabalhar juntos para investir em biotecnologia e desenvolver a biotecnologia. Nosso argumento é que fica mais fácil reduzir os riscos do bioterrorismo se os países em desenvolvimento tiverem mais cientistas e puderem se desenvolver de maneira mais rápida. Isso permitiria também uma maior vigilância, já que os cientistas estariam melhor capacitados para detectar qualquer sinal inicial de mau uso da tecnologia.

Mas o cientista mal-intencionado, a princípio, vai trabalhar escondido, e não dentro de uma universidade ou de uma empresa. Como a rede ajudaria a detectar esse tipo de atividade?

A questão é a seguinte: mesmo se alguém está tentando fazer isso dentro de uma garagem, as chances de ele ter sucesso são muito menores se houver pessoas ao redor capazes de detectar os sinais de mau uso da ciência. Além disso, sem uma boa infra-estrutura científica não há leis, não há regulamentação, não há colaboração, não há códigos de conduta. Portanto, fica muito mais fácil ser um mau cientista. O que estamos dizendo ao G-8 é que, para garantir biosseguridade é preciso investir em biodesenvolvimento nos países pobres. Se você prioriza apenas a segurança, não vai dar certo. O bioterrorismo não faz parte da agenda do Hemisfério Sul, é uma preocupação do Hemisfério Norte.

Como funcionaria a rede? Seria uma questão apenas de incentivar a comunicação entre os cientistas ou haveria um órgão controlador?

Acho que é preciso centralizar, criar um secretariado e conectar as redes que já existem ao redor do mundo para estabelecer, conjuntamente, boas práticas e condutas. O G-8 poderia capitanear o processo, mas é importantíssimo que os países em desenvolvimento tenham participação significativa.

Seria uma AIEA da biotecnologia?

Apesar de falarmos metaforicamente da AIEA, o modelo não pode ser um mesmo, com um grupo de pessoas sentadas em um escritório em Viena. Isso não vai funcionar para a biotecnologia. O terrorismo biológico é muito mais simples do que o terrorismo nuclear. O desenvolvimento nuclear requer investimentos de larga escala e infra-estruturas gigantescas, enquanto o terrorismo biológico pode ser feito dentro de um pequeno laboratório. A única maneira de supervisionar isso é envolver os cientistas em uma rede global, na qual eles possam promover a boa ciência e, ao mesmo tempo, ficar de olho na má ciência.

Há alguma área da biotecnologia que não deveria ser desenvolvida, por ser muito perigosa?

É provável que sim, mas quem é que deve decidir isso? E como? Com base em qual agenda? É justamente para responder a esse tipo de pergunta que precisamos de uma rede legítima e internacional de cientistas, com participação dos países em desenvolvimento. Sem isso, a agenda vai ser ditada pelo Hemisfério Norte.

O Norte vê o desenvolvimento da biotecnologia no Sul como uma ameaça?

Sim. Não tanto em países mais avançados, como o Brasil, China, Índia e África do Sul, mas principalmente em países mais atrasados, como Egito, Paquistão e outros países asiáticos, que ainda não têm capacidade estabelecida e podem ter seu desenvolvimento dificultado pela agenda do Hemisfério Norte.

Se uma pesquisa produz conhecimento que pode ser usado com finalidades terroristas, a publicação desses resultados deveria ser regulada ou vetada de alguma forma?

Essa é uma questão muito importante sobre a qual as revistas e as associações científicas vêm refletindo há algum tempo. O que será melhor: a luz do conhecimento, ou a escuridão? Achamos que o melhor é difundir o conhecimento, cercado de boa infra-estrutura regulatória e de redes de comunicação, para que os cientistas possam praticar a ciência do bem e evitar o uso da ciência para o mal. Quanto mais conhecimento, melhor.