Título: Calote mais uma vez?
Autor: Aloísio de Toledo César
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Mais uma vez o Estado levanta seu braço insensível para dar uma última e, quem sabe, definitiva cacetada na cabeça dos credores de precatórios. Por meio de emenda constitucional se pretende legalizar o calote, sonho de alguns governantes confessadamente maus pagadores.

Os articuladores do golpe fingem não perceber que a conseqüência pior ocorrerá no Judiciário, porque os prejudicados não irão recorrer ao papa, mas, sim, aos juízes, abarrotando ainda mais as prateleiras dos cartórios.

A população tem uma certa dificuldade de entender o que são os precatórios, prevalecendo, muitas vezes, a idéia equivocada de que se trata de vantagens conseguidas por alguns espertalhões. É certo que alguns lograram obter indenizações milionárias, produto de crime, mas são minoria e como tal devem receber um tratamento diferenciado, que lide com a torpeza de forma apropriada.

Os credores de precatórios são, em grande maioria, pessoas que aguardam há décadas o momento de receber pagamentos devidos pelos administradores públicos. Sempre que a Fazenda Pública deixa de pagar alguém, e isso ocorre a todo momento, os credores não podem executá-la, tomando em penhora, por exemplo, um prédio público ou mesmo a sede do governo.

A única saída é ingressar com a ação perante o Judiciário e buscar decisão final reconhecedora do crédito. Quando isso ocorre é expedido um precatório, ou seja, uma ordem do juiz para que o administrador público pague o credor.

Isso se faz pela ordem cronológica, razão pela qual os credores aguardam anos e anos para receber a importância que lhes é devida. Aquela família que teve a casa desapropriada décadas atrás e não recebeu a justa indenização determinada pela Constituição; aquela viúva que lutou perante o Judiciário para que lhe fosse reconhecido o direito à pensão deixada pelo marido; aquele empreiteiro que realizou a obra contratada, e não recebeu nenhum centavo; todos esses credores da fila dos precatórios vão ser mais uma vez logrados.

Com incrível arrogância e demonstrando total desprezo pelo Judiciário, os políticos Renan Calheiros, Aldo Rebelo e Nelson Jobim (aquele mesmo, que faz de tudo para não ser juiz) decidiram aliviar a situação eleitoral dos administradores públicos e ensaiaram um calote nada original, tungando a parte mais fraca.

Isso já havia sido feito, de outra forma, na aprovação da Constituição de 1988, que previu, no artigo 33 do Ato das Disposições Transitórias, uma autorização de parcelamento dos precatórios por oito anos. Os credores que estavam na boca do caixa para o recebimento de seus créditos, após décadas de espera, entraram em nova fila - e ainda para receber em oito anos aquilo que era para ser pago à vista.

O lado grave da questão é que, em grande maioria, os Estados e municípios, seguindo o exemplo da União, pagaram somente algumas dessas oito parcelas ou então o fizeram com atraso, compelindo os logrados a recorrerem ao Judiciário. Quem quisesse receber o que tinha direito e que já havia sido reconhecido pelo juiz só tinha um caminho: gastar dinheiro com advogado e buscar o pagamento na Justiça.

As pessoas que se espantam com a morosidade da Justiça nunca imaginam que isso acontece por causa da avalanche de ações propostas em decorrência de situações legais equivocadas como a acima descrita.

No caso de São Paulo, o ex-governador Mário Covas ficou famoso por não pagar dívida alguma de seus antecessores, ou seja, ignorou os precatórios. Ele só pagava as dívidas que assumia. Depois dele, o governador Geraldo Alckmin, justiça seja feita, regularizou rapidamente os pagamentos.

Algumas prefeituras de São Paulo simplesmente ignoraram os precatórios, gerando uma infinidade de pedidos de intervenção federal.

O parcelamento em oito anos foi apenas o primeiro golpe contra os credores. O segundo veio a seguir: a emenda constitucional nº 30, de 13/9/2000, quando Fernando Henrique era presidente, dispôs que os pagamentos devidos pelas Fazendas federal, estadual ou municipal, em virtude de sentença judicial, se fariam exclusivamente pela ordem cronológica de apresentação dos precatórios.

Tal disposição, aparentemente salutar, não impediu que ocorresse uma emenda ao artigo 78 do Ato das Disposições Transitórias, estabelecendo novo parcelamento, dessa vez por mais dez anos.

Com isso, os antigos credores, que já estavam na fila por oito anos (previsão do artigo 33), "ganharam" mais dez anos para receber o que deveria ser pago à vista, por ordem judicial.

Na verdade, o parcelamento dos débitos foi uma vantagem proporcionada aos devedores para que cumprissem no prazo estabelecido pela Constituição os pagamentos devidos. Mas, como em grande maioria não pagam em dia, algumas centenas de milhares de credores ingressaram e continuam ingressando com ações judiciais para receber as diferenças de moeda, decorrentes da sua desvalorização, e os juros correspondentes aos atrasados.

Sem nenhum exagero, o Judiciário está entupido e quase paralisado por tais ações, sendo fácil concluir que a falência total virá quando os três presidentes de Poderes chegarem ao orgasmo político final e lograrem aprovar a nova cacetada na cabeça dos credores.

Para aprovar a emenda constitucional, terão de contar com os votos dos congressistas, quase todos candidatos à reeleição. Não será surpresa se, ao final da votação, todos entoarem o Hino Nacional. No Judiciário, com certeza o hino será outro, com som de marcha fúnebre