Título: 'Não imaginamos que haveria violência'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2006, Internacional, p. A16

Ahmed Abu Laban: líder muçulmano na Dinamarca

Laban diz que a intenção, ao denunciar a publicação das caricaturas de Maomé, era promover debates sobre a questão

Marc Bassets LA VANGUARDIA COPENHAGUE

O imã Ahmed Abu Laban é um dos homens mais odiados da Dinamarca. O líder religioso muçulmano é considerado no país escandinavo um dos principais responsáveis pela reação internacional contra as caricaturas do profeta Maomé publicadas em setembro no jornal dinamarquês Jyllands-Posten.

Em setembro, quando sua organização começou a protestar contra as caricaturas, o sr. imaginou que isso acabaria com embaixadas e consulados dinamarqueses em chamas?

Não esperávamos chegar a essa situação. Sabíamos que os muçulmanos reagiriam, mas não podíamos prever a dimensão, a intensidade. E nunca imaginamos que haveria violência. O que esperávamos era que nos dessem mais atenção cultural: professores, pensadores, universidades, para organizar debates e seminários.

O sr. lamenta ter organizado, no ano passado, a viagem de uma delegação a países árabes para explicar o caso das caricaturas?

Deixe-me corrigi-lo. Éramos um grupo de organizações, um comitê. Assim, transformar-me no orquestrador de tudo não é correto. Porque Maomé é querido e respeitado por todo muçulmano. Em relação à pergunta, o que eu deveria lamentar? Se a violência tem um efeito negativo sobre a questão, sim, devo lamentar. Tratamos de iniciar um debate frutífero. Se a violência prejudica nossa causa, devo lamentar. Mas, se continua havendo um mal-entendido entre os lados, devemos argumentar em favor de nosso ponto de vista.

Alguns dizem que agora ninguém se atreveria a desenhar Maomé novamente. Poderíamos entender que a violência foi útil para seu ponto de vista.

Para uma mentalidade atéia - e todos são livres para crer ou não -, Maomé é uma fantasia. Para estes, Maomé não existe como pessoa, é uma espécie de ilusão. Portanto, que se esqueçam dele. Creio que será bom se, no futuro, as pessoas refletirem com seriedade antes de fazer mais caricaturas.

Não farão mais caricaturas porque têm medo.

Os homens não podem viver sem temor e tampouco sem satisfações. Tememos ficar sem gasolina na estrada, tememos ficar sem pão para comer... O temor é normal, não é negativo.

No sermão da sexta-feira passada, o sr. disse que, de seu ponto de vista, Maomé é sagrado, enquanto para a imprensa dinamarquesa a liberdade de expressão é sagrada. Isto é interessante, mas o sr. vive na Dinamarca, onde a liberdade de expressão é sagrada. Muitos dinamarqueses dirão que o sr. deve aceitá-la.

Se um rei o convidasse a seu palácio de cem aposentos e lhe dissesse: "O sr. é meu convidado durante uma semana e poderá usar todos os aposentos, menos um. Poderá usar 99", em uma semana o sr. não teria tempo de passar pelos 99, e por isso não se sentiria limitado. Assim, se nos esquecermos dos profetas de Deus (ao fazer caricaturas), não perderemos nossa liberdade de expressão.

Se a imprensa dinamarquesa pode rir da rainha e do papa, por que não pode rir de Maomé?

Uma vez o papa de Roma convidou um grupo de religiosos, entre eles muçulmanos. E ordenou que não fosse servido vinho em respeito aos muçulmanos. Desse modo, comportou-se de uma maneira muito civilizada. Agradou-lhe oferecer hospitalidade a seus convidados para não incomodá-los.

Dou este exemplo porque, se os dinamarqueses querem pintar sua rainha ou qualquer celebridade, é problema deles.

Na Constituição dinamarquesa e em constituições de outros países europeus, fala-se de liberdade de culto e direitos humanos. Assim, que façam todas as caricaturas que desejarem, mas esqueçam-se de Maomé. O que há de errado em aceitar isso para a mentalidade dinamarquesa? Que efeito teria sobre a liberdade de expressão?

Não seria uma liberdade de expressão completa. Seria possível falar de todo mundo, menos do profeta.

Em alguns casos a liberdade de expressão pode ser limitada por lei. Em casos de ofensa. Portanto, caricaturar ou pintar o profeta Maomé poderia incluir-se nesta categoria. A lei diria, por consenso da maioria, que pintar qualquer profeta de Deus é uma ofensa.

O jornal 'Jyllands-Posten' e o governo pediram desculpas pelas possíveis ofensas. É suficiente?

Em minha opinião, é suficiente, mas como podemos convencer as pessoas (nos países muçulmanos)? Concordamos que existe uma falta de comunicação e uma falta de compreensão. Estamos dispostos a cooperar para que as pessoas no Oriente Médio entendam a situação.

Muitos não entendem por que ocorre tal reação contra as caricaturas e não há nenhuma reação semelhante contra os terroristas que matam em nome do Islã.

Os muçulmanos se irritariam com o sr. dizendo que se trata do típico critério duplo europeu ocidental. Por que nos decepcionaram quando sofríamos ditaduras, apoiando essas ditaduras que serviam a seus interesses no Oriente Médio, e agora, quando fazemos o mesmo para protestar contra as caricaturas, vêm com essa pergunta?