Título: Um incentivo à barganha
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2006, Nacional, p. A6

Mudança nas medidas provisórias pode criar mais um espaço para a fisiologia

O Senado aprovou uma modificação nas regras de tramitação das medidas provisórias que, aparentemente, soluciona o problema da paralisação dos trabalhos legislativos pelo uso excessivo desse instrumento por parte do Poder Executivo.

Pela proposta, ainda a ser votada pela Câmara, as MPs só entrariam em vigor depois de passar pela Comissão de Constituição e Justiça. Durante três dias a CCJ examinaria as condições de urgência e a relevância das medidas que, só então, passariam a ter eficácia. Hoje elas entram em vigor de imediato, ao serem editadas.

Considerando que desde a Constituinte os presidentes, todos eles, acostumaram-se a administrar o País por medidas provisórias, a ponto de fazer delas o principal instrumento de governo, é de se imaginar que o Planalto vá mover céus, terras e mares para impedir a aprovação da emenda constitucional na Câmara, onde tem maioria.

E quando o Executivo se movimenta em direção ao Legislativo com força plena de seu desejo, quem paga a conta é o Estado, seja na forma de cargos ou de liberação de recursos.

Mas, admitindo que a emenda seja aprovada, não necessariamente significará um avanço nas relações entre os dois Poderes. Antes talvez se traduza em retrocesso.

Pela regra atual, o Congresso tem a prerrogativa de rejeitar a MP não urgente nem relevante mediante uma análise em comissão especial. Recusada, a medida perde a validade. Tal dispositivo constitucional simplesmente é ignorado no Legislativo, que reclama soberania, mas atua na mais franca serventia.

Suspender a eficácia das MPs por três dias não muda esse quadro de subserviência. Pode, isto sim, torná-lo mais custoso e permeável a escândalos.

A norma pretendida pelo Senado nada mais faz do que criar mais um espaço para negociações de toda sorte durante aquele prazo de três dias em que o desespero do Poder Executivo pela aprovação estará combinado à disposição dos parlamentares de trocar o voto por favores.

O Executivo não se inibirá, por causa disso, em editar medidas provisórias; apenas organizará seu instrumental para fazê-las passar pela Comissão de Constituição e Justiça. Teria sim ficado inibido se desde o começo a Câmara e o Senado fizessem a sua parte.

A votação em primeiro turno da emenda ocorreu terça-feira e ontem já havia senador dizendo em discurso que a população deveria "agradecer à Casa" pela providência.

Agradecer o quê? O remendo com tecido roto? É uma inversão completa de valores o Congresso criar um novo e desnecessário espaço de dificuldade onde muitos vão poder vender facilidades, quando bastaria cumprir o que já está na lei.